O foco desse blog é a pesquisa da história do Sertão baiano.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Fátima e o trem que nunca veio


A história da ferrovia que ligaria as terras do atual município de Fátima ao litoral sergipano, se desenrola em dois momentos distintos. O primeiro projeto documentado é pensado ainda no período imperial. Foi neste contexto que políticos sergipanos idealizaram uma ferrovia que ligaria Sergipe à região que hoje consiste ao agreste baiano, onde Fátima se localiza. Segundo Itamar Freitas, a ideia era estabelecer uma conexão com uma significativa porção de terras da província vizinha (a Bahia). A intensão sergipana era astuta, visava usar a conexão resultante da instalação da ferrovia, que ligaria o estado a uma região ampla e abandonada pela Bahia de forma econômica e política com o intuito de servir de argumento para uma contestação de terras junto ao poder imperial com vistas a anexação desta área ao pequeno estado de Sergipe.

A estratégia, bem como a ferrovia, foram sumariamente barradas por influentes políticos baianos junto ao governo. A Bahia, na ocasião, gozava de ampla influência política no império e suprimia seu pequeno vizinho do norte com um poder avassalador.

Assim, o governo baiano age em nome dos próprios interesses e, em 1887, é autorizada a construção do chamado "Ramal Timbó", que ligaria a estação São Francisco, em Alagoinhas-BA, à capital sergipana, seguindo pela litoral, não mais por zonas interioranas colocando definitivamente uma pedra sobre os planos e ambições de Sergipe com essas terras. Esse ramal foi sendo construindo paulatinamente, passando pela localidade de Timbó (hoje Esplanada) e só chegaria à capital sergipana, Aracaju, em 1913, seguindo pelo litoral do estado e chegando à cidade de Propriá, na fronteira com Alagoas, às margens do Rio São Francisco, somente em 1956.

 Em 1949 se dá o segundo capítulo dessa história entre Fátima e a ferrovia. Dessa vez, não pela vontade sergipana de conquistar territórios da Bahia, mas por interesses de caráter nacional. Neste ano a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), iniciava a construção da usina hidro elétrica de Paulo Afonso-BA. Essa obra gigantesca, sobretudo para os padrões da época, requeria uma enorme quantidade de materiais a serem entregues em datas e horários específicos para que não atrapalhasse o andamento dos trabalhos. Inicialmente, materiais de pequeno porte foram transportados em caminhões pelas modestas estradas e veículos da época, contudo, o alto custo e a morosidade desse meio de transporte, alinhado à frenética necessidade de abastecimento do mastodôntico canteiro de obras, logo fez surgir a necessidade de construção de uma ferrovia que suprisse de forma mais satisfatória as necessidades da obra de construção da Barragem da Chesf em Paulo Afonso.

Foi em 10 de outubro de 1950 que o primeiro passo concreto foi dado para a construção da ferrovia que, se tivesse sido concluída, à exemplo da primeira, sem dúvidas afetaria toda a geopolítica e a economia dessa região dos semiáridos baiano e sergipano. O decreto assinado pelo presidente da república, Eurico Gaspar Dutra, liberava parte dos recursos do trecho da ferrovia que ligaria as cidades de Lagarto, Simão Dias, Paripiranga, Jeremoabo (esse último trecho cortando o território do atual município de Fátima na altura dos povoados Lagoa da Volta, Serra Velha e Jurema) e, finalmente, chegando ao destino, Paulo Afonso passando por terras do município vizinho de Adustina.

O decreto publicado em diário oficial da união liberava quase 87 milhões de cruzeiros para as obras. Foi em 21 de dezembro do mesmo ano que outro decreto foi assinado, liberando desta vez mais 14 milhões de cruzeiros. No ano seguinte, já sob a administração de Getúlio Vargas, um terceiro decreto foi assinado, desta feita, ordenando a desapropriação das terras necessárias à construção da ferrovia sob a alegação de interesse público. Esse último decreto teria sido, sem dúvida, o que mais afetaria a vida dos fatimenses que tinham propriedades às margens da futura ferrovia, mas não há vestígios de que tenha sido posto em prática aqui no município. 

As obras foram iniciadas em diferentes pontos do trajeto por onde passaria a ferrovia. O trecho com a maior concentração de recursos foi na altura do município sergipano de Lagarto, onde uma estação ferroviária chegou a ser parcialmente construída restando ainda hoje seus vestígios, contudo, em diversos outros pontos, inclusive nas terras fatimenses, as obras foram andando em ritmos distintos. Umas das estruturas mais icônicas desse período ainda hoje pode ser vista nas proximidades de Lagarto, na altura do Aras R&R, onde uma ponte ferroviária ergue-se por entre a vegetação a testemunhar essa história. A estrutura que hoje parece levar “de nada a lugar nenhum” é parte das obras da ferrovia que jamais entrou em operação.

No município vizinho de Paripiranga, de acordo com Antônio de Santana Carregosa, as obras da leste, que ele denomina “estrada de ferro Salgado/Paulo Afonso”, impulsionaram a economia da cidade  durante os cerca de cinco anos em que os trabalhadores estiveram presentes nos canteiros de obras daquela localidade, segundo ele, a obra trouxe para a cidade escritórios de construtoras que abriram vagas de empregos para os jovens letrados, membros da aristocracia local e diversos postos de trabalho braçal para a população menos favorecida. Segundo seus levantamentos, cerca de 2000 postos de trabalho foram abertos só na região de Paripiranga, que contava com uma população à época inferior a 1000 indivíduos, oxigenando de forma monumental a economia local.

Infelizmente não há registros oficiais quanto à quantidade de trabalhadores vindos de outras cidades ou de outros estados para atuar no território que hoje constitui o município de Fátima, contudo, sabe-se que barracões para operários foram erguidos próximo ao povoado Belém de Fátima, dentro outros e não há razões para acreditar que o impacto da chegada e permanência de tantos trabalhadores assalariados na pacata vila de Fátima da década de 1950 tenha sido menor. Ademais, a história do senhor Manoel José da Sousa que migrou de Pernambuco para trabalhar na ferrovia e tornou-se morador do município, nos dá a dimensão de como esta obra afetou a gente desta municipalidade.

O senhor Manoel, como dito, era pernambucano e veio para as terras que hoje compõem a cidade de Fátima como funcionário das obras da ferrovia. com o fim dos trabalhos no canteiro, resolveu ficar e constituiu numerosa prole que ainda hoje habita a região na qual ele trabalhava, a antiga Fazenda Volta, hoje, comunidade da Lagoa da Volta. 

Em todo o município, diversos e imponentes vestígios ainda hoje podem ser notados, mesmo mais de meio século depois, assim como histórias guardadas na lembrança de alguns moradores. Certamente, os fragmentos mais importantes que ainda hoje podem ser observados nessa municipalidade referentes ao período estão no povoado Lagoa da Volta, mais precisamente nas terras pertencente à Almir Correia. Lá enormes fendas abertas à mão estão ainda visíveis. Restos das bancadas de nivelamento ainda podem ser notadas, bem como uma estrutura de escoamento de água que guarda uma história curiosa, contada a mim pelo funcionário da fazenda, Toinho, e posteriormente confirmada pelo dono.

Em meados da década de 1990, o pai do atual proprietário, Antônio Correia, decidiu fazer uso da abandonada estrutura da bancada de nivelamento para a construção de uma barragem dentro dos limites de suas terras. Para isso, mandou fechar a passagem de escoamento de água construída pela empresa com o objetivo de que ali, uma vez bloqueada a passagem, se acumulassem as águas resultantes das chuvas. E assim ocorreu, entretanto, a primeira chuva forte trouxe uma quantidade de água bem maior que o volume possivelmente calculado pelo agricultor, o que ocasionou o colapso da estrutura que evidentemente não foi projetada para esta finalidade e a “barragem” se rompeu causando diversos prejuízos materiais a ele e à vizinhos próximos.

Outros resquícios desta obra podem ser notados com facilidade próximo ao povoado Serra e Belém de Fátima, onde a enorme bancada de nivelamento ainda persiste em meio a vegetação que naturalmente cresceu nesses mais de 60 anos desde a interrupção total das atividades na área. Além disso, diversos moradores contemporâneos da obra e seus descendentes contam histórias sobre aquele período de efervescência nestas pacatas localidades.

Entre as histórias contadas pelos antigos moradores contemporâneos e trabalhadores da Leste, sem dúvidas, a mais icônica é a história dos trabalhadores enterrados às margens do canteiro. De acordo com relatos de moradores, diversos trabalhadores acometidos por enfermidades durante o labor acabaram morrendo no transcurso da obra e a solução dos responsáveis foi de sepultá-los ali mesmo, em meio ao solo duro e seco, sem qualquer liturgia de passagem. Seu Raimundo Correia, morador da Lagoa da Volta, relata que nas terras de seu pai, cortada pelas obras, diversas sepulturas precárias foram deixadas para traz, montículos de pedra marcavam o lugar onde infelizes desconhecidos foram sepultados. Raimundo relatou ainda que ele mesmo viu diversas sepulturas ao longo do trajeto da ferrovia dentro das terras de seu antes do “beneficiamento” do terreno que findou por apagar tais registros.

Herculano Vitório de Andrade, 83 anos, nascido no povoado Pau de Colher, foi um dos moradores locais cooptados como trabalhador da obra. Em entrevista concedida para alunos da escola Santa Cecília, sob a orientação do professor de História Tiago Caetano, relatou que as imensas fendas talhadas no terreno duro foram feitas à mão com enxadas e picaretas. No trecho entre a Serra Velha e a lagoa da Volta ele trabalhou de 1953 a 1955 e também relata as mortes e sepulturas que ficaram ao longo do canteiro.

            As atividades foram abandonadas em 1955, quando um acidente de grandes proporções, ocorrido em lagarto, uniu-se aos interesse do governo federal e das montadores de automóveis estrangeiras que estavam chegando ao país para por um fim às obras e na esperança do povo desta região de ter um meio de transporte eficiente e barato que ligasse essas terras ao litoral. Naquele ano, o paiol (depósito) de explosivos que a empresa utilizava na construção, explodiu. Era manhã de uma sexta feira da paixão, logo após a hora do almoço. Relatos de testemunhas dão conta de que a explosão foi sentida e ouvida no município de Simão Dias, cerca de trinta quilômetros de distância do ponto zero.

            Assim se encerram as expectativas geradas em torno da linha férrea, ficando no imaginário popular apenas as especulações de como “a linha da leste”, como ficou conhecida entre as pessoas, afetaria a economia da região e a vida do cidadão fatimense.

 




Referencias:
CARREGOSA, Antônio de Santana. Entre padres e coronéis: Como as disputas oligárquicas deram forma ao município de Paripiranga. Aracaju: Infographics, 2019.

2 comentários:

  1. História muito boa, parabéns professor, moro por estas bandas, quase todos os dia fasso caminhada através da antiga linha do trem que nunca veio, até hoje tem vestígios do trabalho árduo naquele local, como paredes de concreto e grandes escavações através do duro chão pedras.

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