O foco desse blog é a pesquisa da história do Sertão baiano.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

O povoamento do nosso sertão

 

Imagem: Pinterest

Para entender como a zona sertaneja do Nordeste brasileiro foi povoado pelo homem branco (a bem da verdade de maioria mestiça) é preciso compreender que, para o colonizador, toda zona situada distante do litoral era conhecida como sertão. Assim, o cerrado e mesmo a Amazônia entrava na classificação de “O grande Sertão”.

Isso posto, é igualmente importante compreender que a sociedade colonial era baseada visceralmente no litoral e sua economia inicial era fundada no cultivo da cana-de-açúcar e na produção dos seus derivados, uma economia essencialmente fundamentada na exportação.

Ocorre que, com o aumento da população dessa zona litorânea, percebeu-se a necessidade da produção de carne para o abastecimento interno e foi daí que um problema fez com que o colonizador voltasse seus olhos para o sertão ermo, seco e povoado por povos indígenas.

As férteis terras litorâneas eram decerto muito valorizadas pelos senhores de engenho que faziam uso do seu potencial para produzir a cana em enormes lavouras cujo verde dominava a paisagem. Nessa área, iniciou-se a criação de gado, mas as constantes invasões dos rebanhos às plantações de cana e os vultosos prejuízos causados, levou a imponente elite açucareira a pressionar o governo a editar uma lei proibindo a pecuária no litoral, obrigando os interessados na criação do gado a adentrar os sertões em busca de pastagens.

Assim, inicialmente através dos rios, os vaqueiros vão ocupando o sertão, abrindo novas pastagens e criando enormes fazendas com mão-de-obra mista (escarava e de libertos). Aos poucos os chamados “caminhos do boi” foram sendo abertos pela passagem das boiadas que seguiam para o litoral após um período de engorda, uma vez que a única maneira de levar carne fresca do sertão para o litoral era levando o animal vivo.

Ao longo do caminho, pequenos povoamentos vão se formando e esses dariam origem a cidades. Na região da Bahia que hoje tem a denominação de Semiárido Nordeste II, municípios como Jeremoabo, Ribeira do Pombal e Cícero Dantas são fruto desse fluxo de bois e pessoas, do lado sergipano da fronteira, cidade como Lagarto e Simão Dias seguem o mesmo padrão. Mais que isso, em maior ou menor grau, todos os municípios do Semiárido tiveram a mesma origem.

As boiadas que seguiam do Rio São Francisco para Sergipe, tinham a Vila de Lagarto como importante entreposto, do lado baiano, Jeremoabo, Bom Conselho (Cícero Dantas) Cana Brava (Pombal) e Saco dos Morcegos (Banzaê) também tiveram essa classificação.

O destaque fica para Bom Conselho que tinha uma posição estratégica, o povoamento no qual, em 1812, o Frei Apolônio de Todi ergueu uma pequena capela, era ponto de passagem dos comboios que seguiam do São Francisco para a Bahia (como era conhecida a cidade de Salvador) e era via para as boiadas que seguiam para Sergipe, fazendo da cidade um verdadeiro entroncamento regional.

O boi tinha tanta importância para a economia nacional que, além da carne, a produção de couro chegou a ser o terceiro produto na pauta de exportação do país. Outro produto importante para essa região sertaneja foi o algodão. Bem adaptado ao clima local, o algodão foi cultivado em pequenas propriedades e seguiam para o litoral em grandes fardos, o acesso era através dos portos sergipanos. Na cidade de Salgado - Se, uma linha férrea era utilizada para esse escoamento. Essa linha férrea, inclusive, foi estudada para uma ampliação, um novo ramal que ligaria o nordeste da Bahia ao litoral sergipano entrou em pauta no século XIX, mas a ideia foi barrada pela influência de políticos baianos.

Toda a produção de algodão sertanejo tinha destino certo, a Europa. Durante a revolução industrial, as fábricas do continente faziam uso do algodão produzido no sertão, que chegava ao destino final via navio.

Se o fluxo de mercadoria era grande entre o sertão e o litoral, o inverso não era necessariamente verdadeiro. Poucos comerciantes se aventuravam pelas desérticas paisagens sertanejas para praticar o comércio, a exceção foram os tropeiros, comerciantes errantes que vendiam sua mercadoria quase que de porta em porta, abastecendo as bodegas sertanejas dos produtos do litoral, a maioria dos quais, importados da Europa e EUA.

E assim, uma sociedade dinâmica foi se formando, as relações comerciais foram sendo intensificadas, as fazendas foram se modernizando e o homem sertanejo foi sendo lapidado na lida do gado. Frederico Pernambucano de Melo defende que o indivíduo acostumado com a dureza da vida sertaneja, com as lutas contra os indígenas e diante da peleja com o gado, foi formando-se forte e destemido, com um rígido código de honra onde, por vezes, as rusgas eram resolvidas no cano do fuzil.

Foi essa sociedade, formada no isolamento em relação ao litoral que, segundo o referido autor, pôde gerar o fenômeno do cangaço. Para fundamentar sua tese, o estudioso argumenta que há uma identificação entre o sertanejo e o cangaceiro, uma admiração que dura até hoje, por aqueles homens e mulheres que protagonizaram momentos de extrema violência.

 

Moisés Santos Reis Amaral, Professor há 21 anos do Município de Fátima, Licenciado em História pela Uniages com especialização em História e Cultura Afro-brasileira, Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe. Autor das obras: Manual Didático do Professor de História, O Nazista e da HQ Histórias do Cangaço e dos livros Fátima, traços da sua história e O Embaixador da Paz.

 

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quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Labareda foi julgado em Jeremoabo?

 

Fonte: Blog Lampião Aceso.

    Era alta madrugada do dia 8 de julho de 1939 quando um grupo de homens fortemente armados chega a uma modesta casa onde viviam os habitantes da fazenda Curral dos Altos, no município de Bebedouro (Hoje Coronel João Sá – Ba), os bandidos invadem a residência com facilidade, rendem os ocupantes do imóvel e iniciam a execução de um terrível plano de vingança.

            Logo, tiros de parabélum ecoam pela caatinga imersa na escuridão da noite, três corpos caem mortos, são Olegário Bispo, filho da dona da fazenda e dois viajantes, que seguiam para Paripiranga-Ba e tomaram a infeliz decisão de pernoitar ali, foram friamente mortos, eram Antônio Elias e Nonato Terêncio.

            O bando segue a sua romaria de crimes, viajam até a fazenda Logradouro, no mesmo município, e lá assassinam Jovina Maria de Jesus para logo em seguida, atear fogo em sua residência, deixando para trás uma noite de crimes, uma cena digna dos momentos finais do cangaço, atuada pelo bando de Ângelo Roque como uma vingança a uma suposta delação cometida por Josefa Bispo, que resultou na morte de três integrantes do grupo, inclusive a companheiro do chefe, Mariquinha.

            A descrição que você acaba de ler, foi relatada nos autos do processo contra Ângelo Roque, Benício Alves dos Santos (Saracura) e Domingos Gregório (Deus-te-Guie), os cangaceiros que se entregaram em Paripiranga em abril de 1940 e seguiram para Salvador onde cumpriram pena pelos seus crimes.

            Uma vez estabelecido o roteiro dos crimes que levaram à condenação dos três cangaceiros acima citados, me dedicarei a narrar os eventos posteriores, mais especificamente, os episódios ligados ao julgamento desses, tendo como base os processos de ambos.

            O primeiro e mais polêmico elemento a ser analisado é o local da realização do julgamento, visto que, no processo, consta claramente que o julgamento em si, depoimento de testemunhas, condenação e sentença, ocorreu na cidade de Jeremoabo entre 1940 e o final de 1942, como indicado no trecho a seguir: “Sala da sessão do tribunal do júri em Jeremoabo, aos cinco dias de novembro de 1942”, ou, ao finalizar um ato, o escrivão registra: “Dada e passada nesta cidade de Jeremoabo aos 12 dias de novembro de 1942”, conforme imagem abaixo:

Fonte: APEB

            Existem outras referências no texto que dão margem ao entendimento de que o julgamento em questão tenha sido realizado, de fato, na famosa cidade de Jeremoabo, contudo, existem alguns detalhes que precisam ser analisados antes de se chegar a qualquer conclusão. O primeiro deles, com efeito, é o fato de esse evento, se realizado em Jeremoabo como consta do processo, não ter deixado nenhuma outra evidência, nem fotos ou registros em jornais da época nem mesmo ter sido rememorado pela memória popular.

             Pensando por esse viés, percebemos o quão problemático é o ofício de contar a história, posto que a fonte para esse trabalho é um documento oficial, assinado por autoridades conhecidas como, para ficar em um exemplo, o juiz Antônio Ferreira de Brito.

            A cronologia dos fatos indica que no dia 04 de fevereiro do mesmo ano é emitida a Carta de Guia com uma condenação de 30 anos de prisão, é esse documento que define o número do interno Ângelo Roque da Costa como 1522.

No dia 04 de novembro de 1942 sai a condenação pelo assassinato de Olegário Bispo da Conceição, Antônio Elias e Nonato Terêncio, no dia seguinte, 05 de novembro, sai a sentença de mais 30 anos pelo assassinato de Jovina Maria de Jesus, na fazenda logradouro e incendiado à casa dela.

Em 12 de novembro de 1942, o Juiz Antônio Ferreira de Brito, decide determinar que o réu cumpra os 30 anos de prisão apenas por esse homicídio seguido de incêndio, nesse mesmo dia o escrivão, Manoel Luiz Gonzaga, finaliza o manuscrito

É sabido que em 1941, pelo menos, esses homens já estavam presos em salvador e é possível que o julgamento em questão tenha sido realizado lá e registrado como tendo ocorrido em Jeremoabo, mas a hipótese, a meu ver, mais plausível, é que o júri tenha se reunido de fato em Jeremoabo sem a presença dos réus.

A inconclusão do tema, todavia, não invalida a importância histórica do documento de posse do Arquivo Público do Estado da Bahia pois, através deste, foi possível reunir muitas informações acerca dos procedimentos envolvendo os ex-cangaceiros enquanto estiveram na capital baiana.

Sabe-se que os 30 anos de prisão a que foram condenados não foram cumpridos por nenhum dos três cangaceiros citados, contudo, o que era desconhecido até o presente momento, era o documento de comutação das penas, emitido pelo gabinete do presidente Eurico Gaspar Dutra a 18 de setembro de 1947:

Fonte: APEB
         

  Conforme se lê no fragmento acima, o presidente do conselho penitenciário, Estácio de Lima, emitiu relatório favorável à comutação das penas, relatório utilizado como base para a decisão de comutar as penas dos internos.

A conversão das penas vai surpreender o leitor, visto que o chefe do bando, Ângelo Roque, teve sua pena de 30 anos reduzida para 10 anos, ao passo que seus dois ex-comandados, Saracura e Deus-te-guie, de acordo com o mesmo documento, tiveram suas sentenças reduzidas para 12 anos cada, pegando dois anos a mais que o antigo chefe.

 

Moisés Santos Reis Amaral, Professor há 21 anos do Município de Fátima, Licenciado em História pela Uniages com especialização em História e Cultura Afro-brasileira, Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe. Autor das obras: Manual Didático do Professor de História, O Nazista e da HQ Histórias do Cangaço e dos livros Fátima: Traços da sua Histórias e O Embaixador da Paz.

 

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segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Povoado Panelas


 

No distante ano de 1918, um acontecimento brutal assinala o nome do povoado Panelas na história do município. Tudo teve início após um defloramento cometido por um certo João Porfírio dos Reis, este conhecido como João Grande, era nascido e morador das Pedrinhas. Sua data de nascimento remonta ao ano de 1896.

João Grande, aparentemente, seduziu uma moça, sobrinha de João Lucindo de Souza. De acordo com o processo, João Lucindo, em ato de vingança, enviou um emissário à casa do sedutor sob pretexto de irem ambos em viagem das Pedrinhas para as Panelas. Em determinado momento do percurso, João Lucindo aguardava João Grande em tocaia para consumar seu plano de vingança.

Consta dos depoimentos que João Lucindo dominou João Grande com certa facilidade e o espancou, para finalizar com um simbolismo macabro, castrou a sua vítima.

Essa surra levaria, meses mais tarde, ao assassinato de João Lucindo nas imediações da igreja Assembleia de deus, na sede do município, quanto à castração de João Grande, não se sabe se foi consumada, pois, em determinado ponto do processo, uma das testemunhas afirma que João Grande casou-se e teve filhos após o fato.

Esse fato, fartamente documentado, nos oferece um vislumbre do passado de Fátima, sobretudo por citar o nome da comunidade de Panelas mais de cem anos atras, revelando que essa nomenclatura já era utilizada por essa época, visto que “Panelas” não é um nome que consta no registro de terras do município de Bom Conselho em 1857, como constam Paus Pretas, Mundo Novo, São Domingos, Lage da Boa Vista e outros.

Dessa forma, o que se conclui a partir dessas informações é que o nome Panelas já era utilizado pelos moradores da região mais de cem anos atras e o povoado em si, enquanto aglomerado humano, igualmente existe por esse tempo, o que indica que a localidade de Panelas já era habitada em 1918.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Cangaceiros presos.

 


Moisés Santos Reis Amaral

Resumo:

 

            Poucos foram os cangaceiros que tiveram que prestar contas à justiça pelos seus atos. Isso porque boa parte morreu em combate e outra parte substancial se beneficiou do indulto oferecido pelo Estado Novo Varguista após a morte de Lampião. Para esses últimos, restou deixar o Nordeste e seguir a vida em outras regiões do país, sem enfrentar julgamento nem prisão. Alguns cangaceiros, contudo, perderam a janela do indulto governamental e precisaram encarar a lei. É sobre esses o nosso foco nesse trabalho, as penas, os anos de prisão e a vida após cumprir sua sentença são os nossos motes.

 

 

Após a chacina ocorrida em 28 de julho de 1938 na Grota do Angico em Sergipe, inicia-se uma nova fase no fenômeno do cangaço que ficou conhecida como “As entregas”. Com o desaparecimento do chefe maior e o consequente desmantelamento das redes de coiteiros intensificado pelo aumento na perseguição a cangaceiros e seus colaboradores, ficava claro que o cangaço estava com os dias contados.

            Dessa forma, diversos subgrupos iniciaram a rendição frente às autoridades, boa parte deles na cidade baiana de Jeremoabo, ainda em 1938, meses após a morte de Lampião e mais onze pessoas.

            As tratativas desse episódio, tiveram o auxílio de religiosos que serviram de intermediários nas negociações, dificultadas pela evidente desconfiança presente entre cangaceiros e militares. O vigário de Jeremoabo, o português José de Magalhães e Souza, foi um desses, conforme descrito na obra O Embaixador da Paz, de Moisés Reis, como se lê abaixo:

 

Como vimos, o desenrolar dos fatos em Jeremoabo produziu um clima sobrecarregado, que foi sendo aos poucos, amenizado pelo padre. Se lhe causa estranheza o ambiente um tanto amistoso entre cangaceiros e policiais, é importante lembrar que naquele momento ainda existiam cangaceiros ativos na região e era de interesse do padre e, ao que tudo indica, dos militares também, que todos aproveitassem o momento para se entregar, dando linhas finais ao cangaço. (REIS, 2023, p. 24)

 

No trecho a seguir, o mesmo autor discorre sobre os bandos de cangaceiros que aceitaram se render naquela oportunidade em Jeremoabo: “Com o título de “Bandidos vieram”, o padre registra para a posteridade as entregas dos bandos de Zé Sereno, Balão e Juriti, sob a ótica de um religioso que, como indicam os registros, serviu de embaixador, um intermediário entre as partes com a finalidade de findar os mortais embates entre policiais e cangaceiros” (p.19)

Mas nem todos os chefes de bando decidiram facilmente pela rendição. Ângelo Roque, o Labareda e, sobretudo, Corisco, continuaram a agir como cangaceiros ainda por algum tempo, conforme registra o autor: “Os grupos de Ângelo Roque e Corisco ainda se encontravam embrenhados na caatinga. Tanto Ângelo Roque quanto Corisco eram ariscos o suficiente para se manterem combatentes ainda por algum tempo, prova disso foi que ainda levariam dois anos após a morte de Lampião como foragido” (p. 25).

Ângelo Roque se entregaria mais de um ano depois, em maio de 1940, alguns dias depois, Corisco foi executado no município de Barra do Mendes enquanto tentava fugir, possivelmente para Minas Gerais.

            Os cangaceiros do grupo de Ângelo Roque que se entregaram em Paripiranga, foram transferidos para salvador, para a penitenciária do estado. A antiga Casa de Prisão com Trabalho, recebeu os primeiros prisioneiros em outubro de 1861. Símbolo da modernização prisional que chegou ao Brasil após varrer a Europa e EUA, a Casa de Prisão da Bahia representava o abandono de práticas punitivas medievais representadas em ações como o açoite e o enforcamento, vistas como atraso pela sociedade do século XIX.

            A instituição foi um símbolo de modernidade e o orgulho de políticos baianos que se inspiravam nos europeus na tentativa de trazer para o Brasil um sistema penitenciário mais eficiente e moderno, uma visão um tanto romântica da ressocialização de indivíduos através do trabalho.

            Em 1902, passou a se chamar Penitenciária da Bahia, nome que consta nas cartas de Guia dos integrantes do grupo de Ângelo Roque que lá chegaram em 1943 após julgamento.

            Em 1908, passou por uma significativa reforma e ampliação, a inauguração da obra foi um evento pomposo que reuniu diversas autoridades e ganhou amplo destaque na edição de número 13 da revista do Brasil, datada de 31 de março daquele ano.

            A reportagem fez hiperbólicos elogios ao prédio e autoridades, além de fazer cuidadosos registros fotográficos do ambiente. As fotos daquela edição seguem abaixo na ordem que aparecem na publicação e com legendas da edição da revista.

            Cada integrante do grupo foi julgado separadamente e suas punições foram igualmente diferenciadas. Benício Alves dos Santos, o Saracura, teve a ajuda do famoso rábula soteropolitano Cosme de Faria.

 Cosme de Farias nasceu em 2 de abril de 1875 em São Tomé de Paripe, Salvador. Era considerado uma pessoa influente apesar de ter origem fora dos círculos fechados da elite da capital baiana.

Atuou como jornalista e Rábula, advogado sem formação específica. Em 1909 recebe a patente de major da Guarda Nacional, mesmo sem jamais ter exercido a carreira militar. O Habeas corpus impetrado em favor de Sérgio Ribeiro da Silva, a Dadá, é considerado o seu maior feito como advogado, conseguindo livrá-la da prisão em 1942.

O que não se sabia até o momento era que, mesmo antes de defender a cangaceira viúva de Corisco, o “Advogado dos Pobres”, como ficou conhecido, havia defendido o cangaceiro Saracura (Benício Alves dos Santos), antigo integrante do bando de Ângelo Roque.

Usando da sua famosa retórica, que tornava cada peça sua uma obra de arte, Cosme de Farias argumenta em seu Habeas Corpus ao Desembargador, presidente do Tribunal de Apelação da Bahia.

Se referindo às condições da casa de detenção da capital, alega ser a instituição “um tremendo matadouro humano”, conforme documento original abaixo:

 

Infelizmente, na página manuscrita não é possível observar a assinatura do defensor, contudo, pela data e pelo trecho abaixo de outra parte do mesmo processo é possível comprovar a veracidade do documento.

Habeas Corpus impetrado por Cosme de Farias em favor de Benício Alves dos Santos.

Fonte: APEB, secessão judiaria.

 

Observe que trecho acima faz referência ao habeas corpus impetrado por Cosme. Esse é o fragmento de outro trecho da documentação constante na pasta do processo contra Saracura, de posse do Arquivo Público do Estado da Bahia. No final do documento, o advogado ainda solicita dispensa de custos por ser o seu “cliente” desvalido de recursos financeiros.

Cosme de Farias ainda defenderia Dadá, a companheira de Corisco que suplicou por sua ajuda ao se encontrar presa no Hospital Santa Isabel, em Salvador com uma das pernas amputadas em consequência do combate que vitimou Corisco em 1940.

De outro integrante do bando de Labareda, temos o alvará de soltura, também no acervo do APEB. Domingos Gregório dos Santos, o cangaceiro Deus te Guie, Juntamente com o chefe e outros companheiros como Saracura, Cacheado e outros, foram encaminhados para Salvador, julgados e condenados a diferentes penas pelos crimes cometidos durante os anos de cangaço.

            De acordo com o processo ao qual tive acesso, contava, quando foi preso, com 22 anos de idade, era filho de João Gregório dos santos e Francisca Maria de Jesus.

            Deus te Guie foi recebido na penitenciária do Estado da Bahia a 15 de fevereiro de 1943 e registrado como prisioneiro de número 1523, sentenciado inicialmente a 10 anos e doze meses de prisão por participar do assassinato de Olegário Bispo da Conceição, Antônio Elias e Nonato Firmino, crime ocorrido em 8 de junho de 1939 pelo grupo de Ângelo Roque em Bebedouro. Por esse triplo homicídio, inclusive, Labareda pegaria 30 anos de prisão, conforme processo ao qual também tive acesso no arquivo público da Bahia.

            Ainda de acordo com o documento citado acima, Deus te Guie teria amargado longos 12 anos e dez meses de prisão celular, isto é, regime fechado, na capital baiana.

            Ângelo Roque foi, entre os cangaceiros presos, talvez aquele que mais deixou registro no sistema público. Prova disso é o processo de aposenta do ex-cangaceiro que atuou, após o cumprimento da pena, como funcionário público.

            De acordo com o que consta na documentação, Ângelo Roque deu entrada em seu processo de aposentadoria em outubro de 1973, com deferimento em 05 de novembro daquele ano. O processo conta com o número 6.107/973 com o qual foi comunicado ao tribunal de contas do Estado da Bahia.

            O cargo para o qual Ângelo aposentou-se foi o de porteiro, lotado no Conselho Penitenciário.

            Provavelmente para adicionar ao salário de aposentado, apresentou junto a documentação, a resolução de 12 de maio de 1970, que lhe deu o direito a dois adicionais por completar 15 e 20 anos de serviços, respectivamente nos anos de 1964 e 1969.

            Toda aposentadoria, obviamente, tem uma razão e a justificativa para aposentar Ângelo Roque foi, no mínimo, surpreendente. O laudo médico encaminhado em 24 de setembro de 1973 pelo serviço médico do estado e assinado pela perita Leda Sampaio, aponta o antigo chefe de grupo como portador de “alienação mental” e reitera que Ângelo foi considerado “incapaz para o exercício da função pública e para o serviço em geral”, acrescentando que nos dois anos anteriores, o funcionário teria se valido de diversas licenças para tratamento de saúde.

            É possível que Ângelo Roque da Costa tenha, de fato, desenvolvido alguma comorbidade na velhice, contudo, é igualmente provável que esse argumento tenha sido apenas uma alegação falaciosa para justificar sua a aposentadoria. O benefício do agora aposentado foi fixado em 4089,60 Cruzeiros anuais, fixados por decreto publicado em 20 de novembro de 1973.

No processo consta o endereço do ex-cangaceiro, Rua Padre Vieira, n° 2, Capelinha de São Caetano. Ângelo Roque, contudo, aproveitaria pouco de sua aposentadoria, pois viria a falecer no dia 12 de outubro de 1974, menos de um ano depois de ter consumado o seu processo de aposentadoria.

Conforme informação dada a Robério Santos pelo filho dele, Raimundo Roque da Costa, o famoso ex-chefe de grupo está sepultado no cemitério Quinta dos Lázaros, na baixa de Quintas, a apenas algumas quadras do acervo arquivístico que guarda os documentos que utilizei para revelar mais essa faceta da vida de Labareda. 

É comum entre os pesquisadores do cangaço, se referir aos ex-cangaceiros que não foram mortos em combate como “sobreviventes do cangaço. No âmbito da historiografia diversa do banditismo, poucas pessoas tiveram a oportunidade de, por vias variáveis, fugir da luta brutal entre bandoleiros e militares que tantas vítimas fez em todo o Nordeste.

A história dos sobreviventes que foram para Salvador ilustra, acima de tudo, a regeneração desses homens e mulheres que não voltaram a reincidir em qualquer crime após o cangaço, levando uma vida honesta e baseada no trabalho até o fim de suas vidas.



 

REFERÊNCIAS:

 

BAHIA, Arquivo Publico do Estado da. Base da Dados CICRO, Processo-crime.

AMARAL, Moisés Santos Reis. O Embaixador da Paz. Paulo Afonso, Oxente, 2023.

 


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

E o trem, finalmente, veio.

 

Foto: Matheus Matos

    

            Há exatos cinco anos, publiquei no Blog História de Fátima a saga do trem que nunca chegou a apitar em terras fatimenses. A obra, abandonada em 1955, deixou diversos vestígios físicos em boa parte do território do município, além da lembrança em muitos fatimenses.

          No último sábado, dois de setembro de 2023, a Escola Municipal Professora Idivania, trouxe para a avenida a representação de um pedaço da história do nosso município e o ponto alto, sem dúvidas, foi o trem, cuidadosamente confeccionado pela nossa equipe.

          O trem foi representado com um aspecto fantasmagórico, carregado por alunos fantasiados com roupa branca e os rostos pintados. A aparência dada ao trem na avenida se deve ao fato de sua história ter ficado para a gerações posteriores ao fim dos trabalhos no canteiro de obras como uma pequena centelha do passado, um rastilho de história muitas vezes contada de forma subjetiva pela narrativa popular.


          Trazer o trem para a avenida no tradicional desfile cívico da cidade, trouxe mais visibilidade para esse traço da nossa história, posto às novas gerações como uma proposta, um convite ao aprendizado sobre nossas raízes.

          Durante o desfile, era possível notar o semblante de surpresa nos espectadores, um misto de admiração e maravilhamento pela história desse nosso torrão.

          Em que pese o imenso trabalho dedicado por nossa equipe para chegar a esse resultado final, penso que todos ficaram contentes por terem participado dessa etapa da história da nossa escola. Parabéns, Escola Professora Idivania!