Moisés Santos Reis
Amaral
Resumo:
Poucos foram os cangaceiros que tiveram que prestar
contas à justiça pelos seus atos. Isso porque boa parte morreu em combate e
outra parte substancial se beneficiou do indulto oferecido pelo Estado Novo
Varguista após a morte de Lampião. Para esses últimos, restou deixar o Nordeste
e seguir a vida em outras regiões do país, sem enfrentar julgamento nem prisão.
Alguns cangaceiros, contudo, perderam a janela do indulto governamental e
precisaram encarar a lei. É sobre esses o nosso foco nesse trabalho, as penas,
os anos de prisão e a vida após cumprir sua sentença são os nossos motes.
Após
a chacina ocorrida em 28 de julho de 1938 na Grota do Angico em Sergipe,
inicia-se uma nova fase no fenômeno do cangaço que ficou conhecida como “As
entregas”. Com o desaparecimento do chefe maior e o consequente desmantelamento
das redes de coiteiros intensificado pelo aumento na perseguição a cangaceiros
e seus colaboradores, ficava claro que o cangaço estava com os dias contados.
Dessa forma, diversos subgrupos iniciaram a rendição
frente às autoridades, boa parte deles na cidade baiana de Jeremoabo, ainda em
1938, meses após a morte de Lampião e mais onze pessoas.
As tratativas desse episódio, tiveram o auxílio de
religiosos que serviram de intermediários nas negociações, dificultadas pela
evidente desconfiança presente entre cangaceiros e militares. O vigário de
Jeremoabo, o português José de Magalhães e Souza, foi um desses, conforme
descrito na obra O Embaixador da Paz, de Moisés Reis, como se lê abaixo:
Como
vimos, o desenrolar dos fatos em Jeremoabo produziu um clima sobrecarregado,
que foi sendo aos poucos, amenizado pelo padre. Se lhe causa estranheza o
ambiente um tanto amistoso entre cangaceiros e policiais, é importante lembrar
que naquele momento ainda existiam cangaceiros ativos na região e era de
interesse do padre e, ao que tudo indica, dos militares também, que todos
aproveitassem o momento para se entregar, dando linhas finais ao cangaço.
(REIS, 2023, p. 24)
No
trecho a seguir, o mesmo autor discorre sobre os bandos de cangaceiros que
aceitaram se render naquela oportunidade em Jeremoabo: “Com o título de
“Bandidos vieram”, o padre registra para a posteridade as entregas dos bandos
de Zé Sereno, Balão e Juriti, sob a ótica de um religioso que, como indicam os
registros, serviu de embaixador, um intermediário entre as partes com a
finalidade de findar os mortais embates entre policiais e cangaceiros” (p.19)
Mas
nem todos os chefes de bando decidiram facilmente pela rendição. Ângelo Roque,
o Labareda e, sobretudo, Corisco, continuaram a agir como cangaceiros ainda por
algum tempo, conforme registra o autor: “Os grupos de Ângelo Roque e Corisco
ainda se encontravam embrenhados na caatinga. Tanto Ângelo Roque quanto Corisco
eram ariscos o suficiente para se manterem combatentes ainda por algum tempo,
prova disso foi que ainda levariam dois anos após a morte de Lampião como
foragido” (p. 25).
Ângelo
Roque se entregaria mais de um ano depois, em maio de 1940, alguns dias depois,
Corisco foi executado no município de Barra do Mendes enquanto tentava fugir,
possivelmente para Minas Gerais.
Os cangaceiros do grupo de Ângelo Roque que se entregaram
em Paripiranga, foram transferidos para salvador, para a penitenciária do
estado. A antiga Casa de Prisão com Trabalho, recebeu os primeiros prisioneiros
em outubro de 1861. Símbolo da modernização prisional que chegou ao Brasil após
varrer a Europa e EUA, a Casa de Prisão da Bahia representava o abandono de
práticas punitivas medievais representadas em ações como o açoite e o
enforcamento, vistas como atraso pela sociedade do século XIX.
A instituição foi um símbolo de modernidade e o orgulho
de políticos baianos que se inspiravam nos europeus na tentativa de trazer para
o Brasil um sistema penitenciário mais eficiente e moderno, uma visão um tanto
romântica da ressocialização de indivíduos através do trabalho.
Em 1902, passou a se chamar Penitenciária da Bahia, nome
que consta nas cartas de Guia dos integrantes do grupo de Ângelo Roque que lá
chegaram em 1943 após julgamento.
Em 1908, passou por uma significativa reforma e
ampliação, a inauguração da obra foi um evento pomposo que reuniu diversas
autoridades e ganhou amplo destaque na edição de número 13 da revista do
Brasil, datada de 31 de março daquele ano.
A reportagem fez hiperbólicos elogios ao prédio e
autoridades, além de fazer cuidadosos registros fotográficos do ambiente. As
fotos daquela edição seguem abaixo na ordem que aparecem na publicação e com
legendas da edição da revista.
Cada integrante do grupo foi julgado
separadamente e suas punições foram igualmente diferenciadas. Benício Alves dos
Santos, o Saracura, teve a ajuda do famoso rábula soteropolitano Cosme de
Faria.
Cosme de Farias nasceu em 2 de abril de 1875
em São Tomé de Paripe, Salvador. Era considerado uma pessoa influente apesar de
ter origem fora dos círculos fechados da elite da capital baiana.
Atuou
como jornalista e Rábula, advogado sem formação específica. Em 1909 recebe a
patente de major da Guarda Nacional, mesmo sem jamais ter exercido a carreira
militar. O Habeas corpus impetrado em favor de Sérgio Ribeiro da Silva, a Dadá,
é considerado o seu maior feito como advogado, conseguindo livrá-la da prisão
em 1942.
O
que não se sabia até o momento era que, mesmo antes de defender a cangaceira
viúva de Corisco, o “Advogado dos Pobres”, como ficou conhecido, havia
defendido o cangaceiro Saracura (Benício Alves dos Santos), antigo integrante
do bando de Ângelo Roque.
Usando
da sua famosa retórica, que tornava cada peça sua uma obra de arte, Cosme de
Farias argumenta em seu Habeas Corpus ao Desembargador, presidente do
Tribunal de Apelação da Bahia.
Se
referindo às condições da casa de detenção da capital, alega ser a instituição
“um tremendo matadouro humano”, conforme documento original abaixo:
Infelizmente,
na página manuscrita não é possível observar a assinatura do defensor, contudo,
pela data e pelo trecho abaixo de outra parte do mesmo processo é possível
comprovar a veracidade do documento.
Habeas Corpus impetrado por Cosme de Farias em favor
de Benício Alves dos Santos.
Fonte: APEB, secessão judiaria.
Observe
que trecho acima faz referência ao habeas corpus impetrado por Cosme. Esse é o
fragmento de outro trecho da documentação constante na pasta do processo contra
Saracura, de posse do Arquivo Público do Estado da Bahia. No final do
documento, o advogado ainda solicita dispensa de custos por ser o seu “cliente”
desvalido de recursos financeiros.
Cosme
de Farias ainda defenderia Dadá, a companheira de Corisco que suplicou por sua
ajuda ao se encontrar presa no Hospital Santa Isabel, em Salvador com uma das
pernas amputadas em consequência do combate que vitimou Corisco em 1940.
De
outro integrante do bando de Labareda, temos o alvará de soltura, também no
acervo do APEB. Domingos Gregório dos Santos, o cangaceiro Deus te Guie,
Juntamente com o chefe e outros companheiros como Saracura, Cacheado e outros,
foram encaminhados para Salvador, julgados e condenados a diferentes penas
pelos crimes cometidos durante os anos de cangaço.
De acordo com o processo ao qual tive acesso, contava,
quando foi preso, com 22 anos de idade, era filho de João Gregório dos santos e
Francisca Maria de Jesus.
Deus te Guie foi recebido na penitenciária do Estado da
Bahia a 15 de fevereiro de 1943 e registrado como prisioneiro de número 1523,
sentenciado inicialmente a 10 anos e doze meses de prisão por participar do
assassinato de Olegário Bispo da Conceição, Antônio Elias e Nonato Firmino,
crime ocorrido em 8 de junho de 1939 pelo grupo de Ângelo Roque em Bebedouro.
Por esse triplo homicídio, inclusive, Labareda pegaria 30 anos de prisão,
conforme processo ao qual também tive acesso no arquivo público da Bahia.
Ainda de acordo com o documento citado acima, Deus te
Guie teria amargado longos 12 anos e dez meses de prisão celular, isto é,
regime fechado, na capital baiana.
Ângelo Roque foi, entre os cangaceiros presos, talvez
aquele que mais deixou registro no sistema público. Prova disso é o processo de
aposenta do ex-cangaceiro que atuou, após o cumprimento da pena, como
funcionário público.
De acordo com o que consta na documentação, Ângelo Roque
deu entrada em seu processo de aposentadoria em outubro de 1973, com
deferimento em 05 de novembro daquele ano. O processo conta com o número
6.107/973 com o qual foi comunicado ao tribunal de contas do Estado da Bahia.
O cargo para o qual Ângelo aposentou-se foi o de
porteiro, lotado no Conselho Penitenciário.
Provavelmente para adicionar ao salário de aposentado,
apresentou junto a documentação, a resolução de 12 de maio de 1970, que lhe deu
o direito a dois adicionais por completar 15 e 20 anos de serviços,
respectivamente nos anos de 1964 e 1969.
Toda aposentadoria, obviamente, tem uma razão e a
justificativa para aposentar Ângelo Roque foi, no mínimo, surpreendente. O
laudo médico encaminhado em 24 de setembro de 1973 pelo serviço médico do estado
e assinado pela perita Leda Sampaio, aponta o antigo chefe de grupo como
portador de “alienação mental” e reitera que Ângelo foi considerado “incapaz
para o exercício da função pública e para o serviço em geral”, acrescentando
que nos dois anos anteriores, o funcionário teria se valido de diversas
licenças para tratamento de saúde.
É possível que Ângelo Roque da Costa tenha, de fato,
desenvolvido alguma comorbidade na velhice, contudo, é igualmente provável que
esse argumento tenha sido apenas uma alegação falaciosa para justificar sua a
aposentadoria. O benefício do agora aposentado foi fixado em 4089,60 Cruzeiros
anuais, fixados por decreto publicado em 20 de novembro de 1973.
No
processo consta o endereço do ex-cangaceiro, Rua Padre Vieira, n° 2, Capelinha
de São Caetano. Ângelo Roque, contudo, aproveitaria pouco de sua aposentadoria,
pois viria a falecer no dia 12 de outubro de 1974, menos de um ano depois de ter
consumado o seu processo de aposentadoria.
Conforme
informação dada a Robério Santos pelo filho dele, Raimundo Roque da Costa, o
famoso ex-chefe de grupo está sepultado no cemitério Quinta dos Lázaros, na
baixa de Quintas, a apenas algumas quadras do acervo arquivístico que guarda os
documentos que utilizei para revelar mais essa faceta da vida de Labareda.
É
comum entre os pesquisadores do cangaço, se referir aos ex-cangaceiros que não
foram mortos em combate como “sobreviventes do cangaço. No âmbito da
historiografia diversa do banditismo, poucas pessoas tiveram a oportunidade de,
por vias variáveis, fugir da luta brutal entre bandoleiros e militares que
tantas vítimas fez em todo o Nordeste.
A
história dos sobreviventes que foram para Salvador ilustra, acima de tudo, a
regeneração desses homens e mulheres que não voltaram a reincidir em qualquer
crime após o cangaço, levando uma vida honesta e baseada no trabalho até o fim
de suas vidas.
REFERÊNCIAS:
BAHIA, Arquivo Publico do
Estado da. Base da Dados CICRO, Processo-crime.
AMARAL, Moisés Santos
Reis. O Embaixador da Paz. Paulo Afonso, Oxente, 2023.
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