O foco desse blog é a pesquisa da história do Sertão baiano.

sábado, 18 de março de 2023

O assassinato de João Lucindo de Souza.


 

No último dia 11 de janeiro, publiquei aqui no Blog HISTÓRIA DE FÁTIMA uma história que gerou as mais diversas reações das pessoas que nos acompanham por aqui. Na oportunidade, com a ajuda dos sempre parceiros deste Blog Juan Kléber e Eduardo Pires, fiz um apanhado de tudo aquilo o que a memória popular guardou do assassinato de João Lucindo.

O texto intitulado “Quem foi João Lucino” trouxe, como dito, um juntado de informações colhidas em entrevistas com pessoas mais velhas da cidade, reunindo fragmentos de memórias com o objetivo de fazer o registro da narrativa de um assassinato ocorrido em Fátima quando esta ainda se chamava Mocó.

Essa mesma história, entretanto, renderia novos capítulos. Acontece que, em pesquisa no enorme acervo do Arquivo Público do Estado, me deparei com o processo crime do caso. Para os que não estão familiarizados, o processo crime é a reunião dos depoimentos das testemunhas da época, acusados, mandados de prisão e todos os procedimentos tomados pela justiça na época que o crime foi cometido.

De posse dessa documentação, pude acessar informações que, naturalmente, não constavam na memória dos mesmos interlocutores citados acima e isso tem uma razão. Na época do crime, a justiça manteve determinados fatos em segredo e a maioria das pessoas daquele período e, posteriormente, seus descendentes, jamais tiveram acesso a alguns dos detalhes que revelarei a seguir.

Com o processo em mãos, pude identificar, com a ajuda de inúmeros amigos para quem liguei, mandei mensagem ou conversei pessoalmente, alguns ancestrais de diversas famílias fatimenses. Da minha família, por exemplo, diversos indivíduos tiveram participação no crime, entre eles, Ângelo José de Souza (Isso mesmo, Ângelo Lagoa, o fundador da cidade), meu trisavô e também o seu genro, Manoel Reis do Nascimento, que seria o meu bisavô.

Fiz questão de, inicialmente, revelar os meus antepassados, na esperança de quebrar todo o tabu que gira em torno desse caso e, em contrapartida, me sentir um pouco mais confortável em revelar os demais envolvidos em um caso que, como dito, é evitado ainda hoje por muitos fatimenses.  Vamos aos fatos constantes no processo:

Era uma tarde de 18 de dezembro de 1919, um casal que residia na ilha retornava de cansativa viagem a Simão Dias - SE pelas estreitas e arenosas estradas daquele período. Caminhavam em direção ao sol, enquanto mantinham a Serra do Mocó à sua esquerda. A ilha era o destino final dos viajantes que tinham duas opções de caminho nas adjacências do lugarejo chamado de Mocó.

Imagem ilustrativa


Uma era por onde hoje é estrada que liga a zona urbana de Fátima à fazenda Jeep, beirando a Serra do Mocó e saindo onde hoje é a praça da igreja (essa estrada ainda hoje recebe a denominação de Estrada do Mocó) e a outra opção era por onde hoje é parte da Av. Nossa Senhora de Fátima, saindo próximo a atual igreja Assembleia de Deus.

É ignorada a razão pela qual João Lucindo e sua Esposa, Cândida Maria de Jesus, na época com 36 anos, tomaram o segundo caminho, fato é que, nas imediações de onde hoje é já citada igreja, havia uma frondosa árvore, uma quixabeira, para ser mais específico, onde o casal resolveu descansar da viajem antes de seguir até a Ilha.

Imagem ilustrativa


Não demorou muito até que tiros foram ouvidos, era um grupo de homens que saia do mato fechado atirando na direção de João Lucindo que tombou alvejado em diversas partes do corpo, os agressores avançaram e retiraram a arma que a vítima carregava consigo enquanto coronhadas de fuzil massacravam o corpo de João Lucindo, principalmente na cabeça. A esposa gritava em desespero enquanto o crime era consolidado, estava morto João Lucindo.

Após consumar a morte, Manoel Reis do Sant'Ana, conhecido como Yoiô da Lalá, avançou contra a viúva em prantos e tentou esganá-la com as próprias mãos e foi impedido por Ângelo Lagoa, uma senhora que morava próximo ao local do crime veio em socorro e retirou Cândida Maria do local. Estava consumado um crime de vingança, cometido por homens que habitavam uma terra dura, com um estado ausente e onde a vida valia muito pouco. Era o início de um processo longo que repousou por cem anos nas páginas amareladas pelo tempo sob a guarda do Arquivo Público do Estado da Bahia.

O processo só foi oficialmente aberto quase dois anos depois do fato, a 12 de maio de 1922, quando os acusados iniciam uma longa romaria que os levaria a responder pelos seus atos. Inicialmente foram nove acusados:

 

·       1- José Veríssimo Ribeiro;

·       2- Manoel Reis de Sant’Ana (Yoiô de Lalá),

·       3- Ângelo José de Souza (Ângelo Lagoa, residente na Serra do Mocó), 4- José Vieira de Souza (José Lagoa)

·       5- Manoel Geraldo das Pedrinhas,

·       6- Francisco André dos Reis,

·       7- João Gualberto dos Reis,

·       8- Manoel Reis do Nascimento,

·       9- José André dos Reis (os três últimos eram conhecidos como filhos Chico, João e Manoel de Totonho André).

 

Obs: Vou me poupar o possível desgaste de relatar a quais famílias cada um dos acima listados pertencem, deixo isso a cargo do leitor.

 

Os depoimentos que se seguem, dão conta de uma história intrincada e uma “justiça histórica”, pois acreditava-se que João Lucino Havia deflorado uma moça do Mocó e por isso teria sido morto, entretanto, as informações do processo são consistentes em afirmar que o defloramento de fato existiu, mas não foi praticado pela vítima, mas sim com uma sobrinha desta. A cada depoimento, novos fatos são acrescentados e toda a trama vai sendo refeita aos olhos das testemunhas oculares.

A primeira pessoa a depor é justamente a viúva. De acordo com ela, ao levar os primeiros tiros, João Lucino gritou: “Estão me matando” e tombou baleado. É dela o relato mais dramático e detalhado das agressões pós tiro. Ao final do seu depoimento, é questionada se teria mais alguma coisa a declarar e a sua resposta é reveladora:

 

“respondeu que a declaração que tinha a fazer era do motivo do crime; o que o crime foi uma injustiça por João Grande ter tomado umas pancadas por haver deflorado uma sobrinha de João Lucindo (palavra ilegível) cujo defloramento ficou impune”.

 

O trecho “Mandou dar umas pancadas” é mais detalhado adiante e, com efeito, revela-se bem mais dramático que este relato inicial.

Boa parte das principais famílias que compõem a sociedade fatimense hoje em dia, já habitam essa área do sertão baiano desde o final do século XIX.  A família Félix, linhagem de João Maria de Oliveira, é um exemplo disso. Dois desses ancestrais são depoentes no processo. O primeiro é Francisco Félix de Oliveira (Chico Félix), na época com 34 anos, nascido em 1885 na Laje da Boa Vista. Ele alega ter encontrado João Grande e Joaquim Grande armados em tocaia na estrada de Sergipe.

João Grande e Joaquim Grande não haviam aparecido no processo até aqui, mas se revelarão personagens importantes da história, pois o defloramento citado acima foi praticado por João Grande e foi ele que levou uma surra vigorosa de João Lucindo como vingança e essa surra, como vimos, é o que motivaria o crime.

Na sequencia do processo, temos o Rol de Testemunhas, pessoas da época arroladas para depor no caso:

 

Paula Borges de Santana, Pedro Félix de Oliveira, Manoel Joaquim do Nascimento, José de Souza Quirino.

 

O delegado atendia pelo nome de Filadelpho Pereira das Neves e o promotor do caso, de Alfredo Luiz, esses, residente à época em Cícero Dantas.

Imagem ilustrativa


O local do crime era conhecido como Baixa dos Coelhos. Naquele tempo, a área próximo a referida igreja que hoje está urbanizada, era apenas um riacho seco na maior parte do ano com árvores da caatinga que lhe cobriam o leito, por onde o estreito caminho carroçável passava. Como se sabe, a denominação Baixa do Coelho caiu em desuso e hoje não é mais conhecida pela população local.

O depoimento de um garoto de 13 anos (Tio do ex-prefeito Osvaldo Ribeiro) revela que a tocaia contra João Lucindo foi armada horas antes do crime. De acordo com Manoel Ribeiro do Nascimento, que residia na Surjoa, seu pai o havia enviado à casa de um certo Silvério, na Lagoa da Volta. Ao chegar no lugar da estrada onde os homens faziam campana, foi obrigado a voltar. Ao chegar em casa, de acordo com o depoimento, contou ao seu pai, Manoel Joaquim do Nascimento (Avô do mesmo ex-prefeito Osvaldo Ribeiro) e contou o ocorrido. Diante do relato do filho, Manoel Joaquim se dirigiu até a localidade indicada, achando tratar-se de um assalto, muito comum nessa época e região. A meio caminho, Manoel Joaquim ouviu os tiros enquanto se aproximava ao longe.

O próximo depoimento é da moradora que socorreu a viúva de João Lucindo e a acolheu em sua casa:

 

Theodora Maria das Virgens, 31 anos, nascida em 1891, casada, moradora da laje. Perguntada sobre os fatos, disse que estava em casa, quando ouviu o barulho dos tiros e uma mulher gritando por socorro (trecho ilegível) um grupo de homens armados que lhe disse: vai olhar para João Lucindo que está de pernas para cima ali na estrada morto para servir de testemunha? E chegando no lugar onde estava a vítima, encontrou a viúva, estando como morto João Lucindo. Viu uma turma de homens armados, não sabendo as armas (trecho ilegível) umas espingardas e outros – Respondeu não saber quem mandasse praticar o crime – respondeu que estima os acusados como amigos, mas que ultimamente tiveram uma rusga e ficaram inimigos, não sabendo exatamente a razão – respondeu que a vítima tinha por procedimento trabalhar muito.

 

É interessante notar, com esse pequeno fragmento, como a comunidade local da Serra do Mocó já tinha laços fortes no distante ano de 1919, contrariando a ideia antiga de que o povoamento local era de meados dos anos 1920.

Pedro Félix de Oliveira, 30 anos na época, nascido em 1892, casado, natural da Lage da Boa Vista. Disse estar em um tanque quando alguém passou pedindo para ir acudir João Lucindo. Ele e Manoel Félix, seu irmão, foram ao lugar referido e encontraram a viúva chorando dizendo que tinham assassinado seu marido, o qual estava prostado no chão com muitos ferimentos de bala do peito para cima, o corpo e a cabeça machucados.

Félix José de Oliveira é o descendente dos Félix (linhagem de João Maria de Oliveira) mais antigo a ser notado na região da Serra do Mocó. Na oportunidade tinha 73 anos, nascido em 1849 em Patrocínio do Coité (atual Paripiranga), era casado e morava na laje da boa vista. Afirmou em depoimento que não viu o acontecido e que falaria o que ouviu falar a respeito. Foi a ele que um dos envolvidos, Camilo de José Veríssimo, relatou não se arrependeu do crime, pois haviam matado uma cobra. A Félix José, José Veríssimo, que era seu compadre, teria afirmado que não teria sido ele propriamente o autor dos tiros, mas não negou estar entre os algozes.

Manoel Joaquim do Nascimento (avô de Osvaldo Ribeiro), tinha 60 anos na época, nascido, portanto, em 1862, casado, lavrador, morador da Laje, natural do Licuri. Manoel confirmou a versão do filho, dizendo ter mandado o menino na Lagoa da Volta e chegando na Baixa do Coelho, o garoto topou com a tocaia de homens armadas que o fizeram voltar para a sua casa.

José Veríssimo parece mesmo ter sido um dos personagens principais na trama. Tinha 63 anos de idade na época, nascido em 1859.

 

“filho de Francisco Ribeiro do Nascimento, casado, natural da Cotia, sabendo ler e escrever”.

 

          No julgamento, confirmou que o assassinato deu-se em virtude de brigas ocorridas após o defloramento. Após esse fato, João Lucindo (que ficou para a história como “um valentão”) deu uma surra em João Grande e depois em outras duas pessoas, um homem feito, Joaquim Francisco dos Reis, e um rapazote, João Porfírio dos Reis (Zé Miúdo), esse último quase foi castrado pelo fariseu da Ilha de São Pedro.

João Lucindo estava mesmo condenado por seus atos violentos, ao que consta, feriu a honra de diversas famílias da região do Mocó em um tempo em que sangue se pagava com sangue e com isso assinou sua sentença de morte. Tanto é que João Grande gritava aos sete cantos que na Ilha ele não ficava, pois o mataria e no dia da tocaia, dois grupos de homens o aguardavam, um onde se deu o fato e outro na estrada do Mocó, que desembocava na atual praça da igreja.



O assassinato parece ter sido, ao menos inicialmente, motivo de orgulho para os algozes de João Lucino, mas a abertura do processo trouxe complicações a estes, como podemos depreender do mandado de prisão contra eles assinado a dezoito de maio de 1922, ordenando a prisão de:

 

José Veríssimo Ribeiro

Manoel Reis de Sant’Ana

Ângelo José de Souza

João Gualberto dos Reis

Manoel Reis do Nascimento

Camilo Ribeiro da Silva

Manoel Corcino dos Reis

Francisco Antônio dos Reis

José Vieira de Souza

José Antônio dos Reis

 

          Todos foram recebidos na cadeia de Cícero Dantas, conforme auto de recebimento abaixo:

 

Recebi e ficam recolhidos à cadeia pública, desta vila os acusados respectivos. Cadeia Pública da Vila de Cícero Dantas 19 de maio de 1922. Carcereiro João Francisco Filho.

 

          Não se sabe ao certo por quanto tempo os acusados ficaram presos, essa informação não existe no processo, nem foi guardada na memória popular. Muitos entrevistados, aliás, nos relataram que as pessoas daquele tempo faziam um esforço descomunal para esconder a situação, sobretudo das crianças. Fato é que, ainda no ano de 1922, Sabino Dias da Silva, Juiz do caso, emitiu ordem de soltura que contemplava todos os acusados do crime.

          O caso da morte de João Lucino é um exemplar sem igual. Através dele, podemos acessar informações importantíssimas que vieram a confirmar que a região onde hoje é Fátima já era habitada de forma significativa na segunda metade do século XIX, trouxe mais robustez no estudo dos primeiros troncos familiares a se fixarem por aqui e forneceu elementos consistentes de como a vida era tocada nessa região nas primeiras décadas do século XX, mas o elemento mais importante de tudo isso, a meu ver, é o contraponto importante feito das fontes orais por intermédio do processo. Comparando as informações que ficaram para a posteridade através da memória, podemos observar como os fatos são ressignificados, memórias são reformuladas, moldadas e até mesmo criadas no imaginário popular. Nesse sentido, um caso em particular me chamou a atenção, um senhor nascido em 1935, treze anos após o assassinato, jura que acompanhou os fatos pessoalmente, revelando um caso clássico e maravilhoso de falsa memória.


Moisés Santos Reis Amaral, Professor há 20 anos do Município de Fátima, Licenciado em História pela Uniages com especialização em História e Cultura Afro-brasileira, Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe. Autor das obras: Manual Didático do Professor de História, O Nazista e da HQ Histórias do Cangaço e do livro Fátima: Traços da sua História.

 

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