O foco desse blog é a pesquisa da história do Sertão baiano.

sexta-feira, 26 de março de 2021

De Bom Conselho, O Barão de Jeremoabo recebe notícias da Guerra de Canudos.

Foto: Wikipédia

 

    As estadias de Cícero Dantas Martins, O Barão de Jeremoabo, em Bom Conselho, atual cidade de Cícero Dantas eram longas e frequentes. Era notório o apego do Barão à pequena vila que, anos depois da sua morte, passaria a carregar o seu nome de batismo.

            Do casarão que hoje abriga a Rádio Regional de Cícero Dantas, o fidalgo recebia amigos e aliados políticos, tomava decisões sobre intrigas locais, administrava os seus negócios e escrevia e recebia cartas para aliados e amigos. As cartas, aliás, tomavam muito o tempo do político e eram o principal meio de comunicação entre ele e aqueles com quem se relacionava. Estima-se que, durante a vida, o barão tenha escrito mais de 40 mil cartas. Muitas delas disponíveis hoje como acervo de consulta para historiadores, jornalistas e curiosos.

            Foi por meio de cartas que o cidadão de Tucano, Antero Cirqueira Galo, informou ao Barão, por exemplo, da morte do famoso Coronel Moreira César em luta contra os conselheiristas. Na missiva, datada de 7 de março de 1897, escreve o emissor:

 

Chegou hoje o Coronel Francisco Passo, vindo do Cumbe, (atual cidade de Euclides da Cunha) afirmando dolorosa notícia. As forças legais foram completamente arrasadas após penetrar Canudos duas vezes, fazendo grande arraso no povo de Conselheiro, sendo mortos (sabidos) o Coronel Moreira César, Tamarindo e o Tenente Pires Fera.

 

            Como qualquer oligarca da época, o Barão torcia pelo fim da guerra e pela destruição de Canudos, embora seu nome tenha sido vinculado ao Conselheiro por adversários políticos.

            É perceptível o tom de lamento de Antero Cirqueira Galo ao falar da derrota das tropas do exército, os grandes fazendeiros da região torciam pelo fim da guerra e pelo retorno da “normalidade”.

            As notícias da guerra eram contínuas, na mesma carta, Antero relata que os conselheiristas apoderaram-se dos mantimentos, armas, munições e tudo aquilo o que foi deixado para trás pelos soldados escorraçados de Canudos.  

Como dito, as cartas eram um importante meio de comunicação para o Barão, três anos antes da correspondência acima, Antônio Ferreira de Brito, ancestral da poderosa família Brito de Ribeira do Pombal, escreve ao Barão as notícias das pelejas com conselheiristas. No dia 10 de fevereiro de 1894, escreve Britto ao amigo:

 

Ontem fomos surpreendidos com a aparição de 17 sicários de Antônio Conselheiro, armados até os dentes, demoraram pouco e seguiram para as bandas daí.

 

Mas adiante, se queixa:

 

Começaram as correrias, em breve, acontecerão roubos e desrespeitos às autoridades. Como combate-los com um só praça (policial) que tem no Pombal?

 

Essas notícias eram frequentes naquele conturbado final do século XIX. Do casarão em Bom Conselho, o Barão refletia e escrevia à amigos descrevendo a sua preocupação. Dezenas de cartas foram trocadas somente com Antero Cirqueira Galo falando da Guerra de Canudos. Tantas foram as cartas com os demais aliados e amigos que, parte delas, foi compilada recentemente em um livro, intitulado CANUDOS: CARTAS AO BARÃO, organizado por Consuelo Novais de Sampaio, lançado pela editora da USP.

 

Fonte: Corpus eletrônico Documentos do Sertão.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Padre Renato Galvão pede ajuda ao governador da Bahia para socorrer o povo de Monte Alverne.

Luiz Viana Filho, Ex-Governador da Bahia. 
Fonte: Google Imagens.

 

Nos anos 1950, “Monte Alverne” era como se chamava o pequeno povoamento que, futuramente, se tornaria a cidade de Fátima. Como é de conhecimento de todos os seus habitantes, a seca, infelizmente, é uma realidade com a qual, de tempos em tempos, o povo dessa nossa terra precisa lidar.

            Felizmente, nos dias atuais, existem políticas de combate à seca que amenizam bastante o sofrimento do nosso povo. Certamente, ainda faltam ações mais efetivas de combate a esse flagelo que a natureza nos imprime, mas ações como água encanada, carros pipas, açudagem, programas de financiamento para a agricultura familiar e demais atos de assistência social que temos hoje atenuam os efeitos nefastos da seca.

            Na década de 1950, contudo, as políticas sociais de combate à seca deixavam muito a desejar e o sofrimento do povo dessa região era infinitamente maior. Um personagem de grande valia para a população mais pobre por essas bandas, certamente, era o Padre Renato Galvão. Diversas cartas publicadas no acervo do “Corpus Eletrônico, Documentos do Sertão” registram a luta do vigário, ex-prefeito de Cícero Dantas, para, literalmente, salvar vidas das severas secas.

            Em carta endereçada ao Deputado Estadual João da costa Pinto Dantas Júnior, datada de 7 de setembro de 1955, o vigário apela ao chefe político local, a intercessão do parlamentar junto ao então governador da Bahia, Luiz Viana, em nome do então povoamento de Monte Alverne que sofria com os efeitos hediondos da seca daquele ano.

            Embora o ano de 1955 seja marcado na história de Fátima com o andamento das obras da Ferrovia Salgado/Paulo Afonso, o que certamente impulsionou a economia da região, as consequências da seca daquele ano atingiam de forma desumana a população local que, de acordo com os relatos do Padre Renato, não possuíam água para beber e haviam perdido a lavoura e a criação, muitos precisavam se alimentar de farelo resultante da moagem do tronco do Licurizeiro.

            Na oportunidade, escreveu o padre ao Deputado:

 

Peço a sua valiosa interferência junto ao Dr. Viana a respeito do Distrito de Monte Alverne, cuja população não tem mais água.

 

            O apelo feito especificamente em nome do povo de Monte Alverne, aponta uma identificação já bem conhecida que o religioso tinha com os nossos antepassados. Esse pedido, provavelmente, foi devidamente encaminhado ao governador e resultou na construção do Poço Municipal, “a Bomba”, como é popularmente conhecida e que ainda hoje existe na praça da igreja matriz. O poço que seria inaugurado 5 anos após o envio da carta (1960) ainda serve ao povo fatimense.

A relação do Padre Renato com o Dr. Dantas, como o deputado era conhecido, foi muito duradoura e proveitosa para o povo que vivia na área de influência do Padre. As centenas de cartas trocadas entre os dois dão conta de uma relação amistosa entre o político e o religioso.


segunda-feira, 22 de março de 2021

A trajetória do cinema em Fátima.

 


    Nesses nossos tempos, ir ao cinema é algo quase démodé na concepção da nossa juventude, talvez por falta de espaços com essa finalidade e/ou em decorrência do advento de plataformas on-line que oferecem um extenso catálogo de filmes e séries. Ao que parece, tudo isso foi minando a hábito de frequentar salas de cinema.

            O cinema é um fruto do século XIX, para os fatimenses, essa “novidade” chega ainda nos anos 1980, quando projetores errantes e rolos de filmes paravam sazonalmente na então Vila de Fátima para a apresentação de filmes de diversos gêneros.

            Em conversa com José Bomfim Andrade, testemunha ocular daqueles acontecimentos, foi possível traçar um panorama dos eventos em torno da introdução do cinema na sociedade fatimense.

            Onde hoje funciona o supermercado Nossa Senhora de Fátima, funcionava o Cine Jangada. Nome pitoresco dado pelos jovens da época à sala de cinema improvisada tocada por um sisudo senhor de nome Manoel, ávido pela aguardente Jangada, daí o nome popular da sua sala.

            Seu Manoel Jangada, como era conhecido, era natural de Ribeira do Pombal e ganhava a vida “passando filmes” pela região, de acordo com Dárcio, figura que, como veremos adiante, faz parte desse aspecto interessante da história de Fátima, ele atuava em Fátima, Adustina, Antas e diversas outras cidades e vilas da região.

            Dárcio era um garoto na época e ganhava uns trocados girando o velho projetor de filmes. Para que aqueles mais jovens possam compreender, o projetor era uma engenhoca mecânica onde o rolo de filme era acoplado e necessitava que alguém girasse a manivela que ia rodando o filme e projetando-o na parede para os espectadores.

            Ainda nos anos 1980, Seu Manoel do 14, criou o Cine 14, que ficava nas proximidades de onde hoje funciona a Panificadora Valentina. De acordo com José Bomfim, aquela região era o que comumente se chamava de “ponta de rua”, isto é, era uma área afastada do então centro da vila, localizada em área sem muitas construções e com esgoto a céu aberto.

            Quando eu era criança, já nos anos 1990, lembro de ter assistido a uma das últimas cessões do Cine 14, que já funcionava onde é o conhecido Bar 14. Dárcio, que com o passar do tempo tornou-se prático na arte de girar o projetor ainda trabalhava no Cine 14.

            Naquela oportunidade, assistimos a um filme dos trapalhões e enquanto dávamos gargalhadas com as peripécias do quarteto trapalhão, um ou outro espectador mais travesso erguia a mão no meio da sala de cinema e, como o projetor ficava nos fundos, projetando o filme na parede da frente, a mão do atrevido aparecia como um sombra no meio da tela, o que gerava desaforados xingamentos para o indivíduo.

            Em 8 de julho de 1896, os primeiros filmes foram exibidos no Brasil, na Rua do ouvidor, no Rio de Janeiro. Levaria mais de 80 anos até que a chamada sétima arte fosse apresentada ao povo da pacata Vila de Fátima. Aqueles eventos ainda estão gravados na mente das testemunhas oculares e formam mais uma das facetas da nossa história.


A influência dos povos islâmicos na cultura nordestina


 

Um dos elementos mais emblemáticos do povo nordestino é a sua origem miscigenada e não apenas do ponto de vista étnico, mas, sobretudo, vê-se simbioses em sua diversidade cultural.

O vaqueiro nordestino é a representação viva das origens plurais deste povo pois, em sua gênese, tem raízes ibéricas, já que os povos que habitam e habitaram aquela península europeia, sempre nutriram forte paixão pela tauromaquia, sendo as touradas um patrimônio cultural na Espanha e em países latino-americanos colonizados por estes, como México e Colômbia, por exemplo, e em menor escala, na parte mais oeste da península, nas terras lusitanas, sendo que em Portugal a tourada com final trágico (morte do touro) foi proibida no ano de 1928, medida relaxada posteriormente. Até a presente data persiste em locais com forte tradição que ainda se permite tal prática legalmente. No Brasil, temos a farra do boi em Santa Catarina, herança dos colonos açorianos, a vaquejada, cavalgadas e Pegas-de-Boi aqui no nordeste.

Nada disso se compara a lida diária do vaqueiro, verdadeira reminiscência da colonização portuguesa nestas terras, que para muitos tem origens puramente ibérica, portanto, europeia. 

Neste breve texto, se buscará mostrar influências islâmicas nesta prática, sendo que, como é sabido, povos mouros (norte-africanos) e árabes estiveram presentes na Península Ibérica por mais de sete séculos, tempo mais que suficiente para imprimir profundas marcas nos costumes e tradições daquela região.

O domínio islâmico começou a enfrentar resistência com o início das cruzadas, que eram expedições militares insufladas pelos altos clérigos católicos com o fito de retomarem a Terra Santa (Jerusalém) dos muçulmanos, e isto se deu no século XI, época do início da chamada Reconquista Ibérica e só veio a cabo no ano de 1492, quando cai o Reino de Granada, último bastião islâmico na península. Seria ingênuo pensar que sete séculos de presença de um povo não deixassem marcas indeléveis na cultura local e, obviamente, a cultura islâmica está presente tanto na Península Ibérica, quanto nos povos conquistados por estes, a exemplo dos povos latino-americanos.

Temos um manancial de costumes e palavras de origem árabe, como por exemplo, a azulejaria, o cavaquinho brasileiro que é um ‘descendente’ do alaúde árabe, os vendedores ambulantes, famosos mascates, também são uma herança daquele povo, assim como o costume de colocar um lenço sobre a cabeça, cultivado por distintas senhoras nordestinas.

 No campo das palavras temos inúmeros exemplos, como, açafrão, açougue, açúcar, açude, armazém, arroz, alface, alicate, almofada, alvará, café, nora, xadrez, zero e tantas outras. A matemática é um dos campos mais fecundos desta herança cultural, basta lembrar que usamos os práticos números hindu-arábicos em vez dos complicados algarismos romanos.

Mas, retomando o foco, no Nordeste, desde os primórdios da colonização, vimos que a expansão para os sertões se deu na lida do gado, na cultura do vaqueiro e, assim, atingimos os rincões destas terras adustas, quando os vaqueiros, funcionários da casa da Torre da dinastia D’ávila, adentraram o assim denominado “Sertão”, em busca de terras para a criação de gado.

 O vaqueiro em seu canto tradicional, o aboio, traz sua vida dura no seu cantar, ele se lamenta ao emitir um conjunto de sons, inclusive alguns sons guturais que incrivelmente encontram eco na cultura islâmica do chamamento às cinco orações diárias, pilar da fé islâmica que é proferida diariamente nos minaretes das mesquitas pelos muezins ou almuadens.

Na época inicial da colonização no Brasil haviam inúmeros ‘cristãos novos’ que eram judeus e muçulmanos recém convertidos a fé cristã e, que muitas vezes só o haviam feitos para escaparem dos horrores da tenebrosa Inquisição Católica, que lançava a fogueira os hereges e infiéis, sendo que a morte rápida no fogo era um alento, já que muitas vezes o indivíduo vítima desse atroz tribunal religioso sofria torturas indizíveis para confessar seus supostos desvios para com a fé católica. Assim, o lamento do vaqueiro, é uma reminiscência, um som atávico de povos oprimidos que queriam expressar sua fé livremente e tinham que emular uma fé alheia para sobreviver.

Séculos mais tarde tivemos nova leva de islâmicos no Brasil, agora escravizados, que vieram sobretudo da região onde hoje é a Nigéria, dentre estes temos os famosos malês, que protagonizaram uma revolta que sacudiu a Bahia. Escravos de traços culturais muito fortes e duradouros que resistiram ao tempo, chegando, inclusive e com as naturais variações, a esta nossa região do semiárido baiano, por exemplo.

A cultura de um povo é rica e, não se pode usar reducionismos para narrar histórias plurais. O eurocentrismo tenta anular tudo que não parte do velho continente, mas, o brasileiro é a simbiose do nativo indígena, do colonizador europeu e do escravo africano, entretanto, o próprio europeu é fruto de misturas que se processaram ao longo de séculos de contatos com povos de diversas matrizes.

Essa nossa formação étnico-cultural nos moldou tal qual o somos hoje, carregados de ressignificações culturais construídas e reconstruídas ao longo dos séculos, foi essa conjuntura que nos fez resistente as intempéries climáticas, carregados de tradições e rancores religiosos e preenchidos por uma sólida identificação com as nossas tradições e costumes.

 

Texto produzido em co-autoria com Fágner Andrade.

 

 

FONTES:

AL-JERRAHI, Haiji Sheikh Muhammad Ragip. HISTÓRIA DA PRESENÇA ISLÂMICA NO BRASIL - Um breve relato, 2003. Disponível em: <http://www.masnavi.org/jerrahi/Artigos___Palestras/Historia_da_presenca_Islamica_/historia_da_presenca_islamica_.html> Acesso em: 18 de mar. de 2021.