O foco desse blog é a pesquisa da história do Sertão baiano.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Assassinato entre escravizados.

Raimundo Correia de Souza, dono do escravizado assassinado.

 

Era cinco de maio de 1888, na fazenda Tanque Novo, Bom Conselho. Passava das onze horas da noite quando Martinho, escravo pertencente a Maria Francisca de Jesus, se dirige à Fazenda Olaria, de propriedade de Raimundo Correia de Souza (Tio de Correinha da zabumba), é noite alta e a maioria das pessoas já estavam dormindo. Martinho chega a uma pequena casa de palha onde dorme tranquilamente Sérgio, escravo de Raimundo Correia de Souza.

Sorrateiramente Martinho afasta duas tábuas que servem de porta ao casebre simples e acende um fogo, provavelmente para ter visibilidade. A fraca luz produzida pelas chamas permite que Martinho identifique com precisão o local onde Sérgio dormia, aproxima-se portando um machado que trazia consigo e faz mira, sem piedade desfere uma certeira pancada com o “olho do machado” na cabeça da sua vítima.

Mesmo diante da brutalidade do fato, Sérgio não morre imediatamente, geme e se contorce de dor enquanto seu algoz se afasta, recoloca as tábuas no acesso à cabana e caminha de volta ao Tanque Novo. No dia seguinte, para não levantar suspeitas, tenta seguir uma rotina normal, levanta-se cedo e vai para roça trabalhar. Não demora muito até Raimundo Correia, tenente da guarda nacional, acompanhado de José Napoleão e mais dois escravos, chegar ao local onde Martinho trabalha e dar voz de prisão ao assassino. Começava ali um longo julgamento, ocorrido na Vila de Bom Conselho, atual Cícero Dantas. Sérgio morreria quatro dias depois do atentado e Martinho é indiciado em crime de morte.


Localização: Foto, Marcelo Reis.

A história que você acabou de ler está detalhadamente descrita no processo crime 07/225/17, manuscrito de 198 páginas, sob a guarda do Arquivo Público do Estado da Bahia.

No decorrer dos trâmites do processo, as testemunhas relatam que Sérgio e Martinho tinham tido uma “alteração”, uma briga por razões desconhecidas. É provável que a disputa pelo amor de uma escravizada tenha provocado o desentendimento entre os dois. Ao longo das páginas amareladas pelos cento e trinta e quatro anos decorridos, descobre-se que Martinho havia ido à casa de Sérgio outras três vezes, mas não levou a cabo o seu plano de vingança, até consumar o fato no dia cinco de maio.

Preso pelo dono do escravo assassinado, Martinho segue para a cadeia da vila de Bom Conselho onde é interrogado e aguarda o desenrolar dos procedimentos necessários. Ali, relata ter entre 45 e 46 anos, ter nascido em Inhambupe e ter chegado à fazenda Olaria 30 anos antes do crime.

No dia nove a promotoria oferece denúncia contra o acusado:

Ilustríssimo senhor juiz municipal [trecho ilegível] o promotor da comarca, em cumprimento do dever que lhe impõe a lei, vem ante o ilustríssimo denunciar a Martinho, escravo que foi de D. Maria Francisca de Jesus, pelo fato que possa a expor [trecho ilegível]. Tendo no mês de abril tido o denunciado uma alteração com Sérgio, escravo do Tenente Raimundo Correia de Souza, ao ponto de se atracarem, resolveu vingar-se. Pelo que, por mais de uma vez foi à casa do seu contendo à noite e achando-o dormindo voltou sem nada fazer-lhe, mas no dia 5 do corrente mês, estando em um trabalho na roça do coronel Aristides da Costa Borges, onde também se achava Sérgio e tendo esse zombado do denunciado, talvez por não ter se saído melhor na luta, resolveu desde logo levar a efeito o seu projeto de vingança e então, no mesmo dia, por volta da meia noite, dirigindo-se à casa de Sérgio e achando-o dormindo, passa a dar certeiros golpes – acendeu o fogo e pegando de um machado, descarregou-lhe sobre a cabeça, produzindo-lhe tão grande pancada, depois a morte.

Ora, com por esse procedimento, o denunciado incorreu na sansão penal do art. 192, do código criminal, para que seja punido [trecho ilegível] o promotor público dá a presente denúncia e apresenta como testemunha a senhora [palavra ilegível] Rodrigues dos Santos, Pedro Francisco dos Santos, Saturnino Viana Nunes, Amâncio dos Reis de Alcântara, José Calazans da Silva, Manoel Cardoso dos Santos, todos moradores nessa vila.

 

Ilmo° Promotor Público.

 

No dia 15 de maio, doze dias após o crime, a proprietária do escravizado concede a este carta de liberdade, conforme consta no processo:

 

Digo em aliança [trecho ilegível] D. Maria Francisca de Jesus que [trecho ilegível] escravo de nome Martinho, de idade de 46 anos, mais ou menos, ao qual concedeu liberdade, que, de hoje em diante, ciente do crime contra [trecho ilegível] o presente de minha livre [trecho ilegível] porém em mão [trecho ilegível] a João Nunes da Silva, que este por mim [trecho ilegível] em presença de duas testemunhas.

Bom Conselho, 15 de maio de 1888.

 

João Nunes da Silva

João Gonçalves Dias

Auriclei Augusto César.

 

 Mas qual a razão da concessão da liberdade a um escravizado que tinha acabado de ser preso por assassinar outro homem? A resposta para isso é tão dolorosa quanto pode ser o próprio regime escravista. Em conversa com o advogado e historiador Fagner Andrade, ele me afirmou que um escravo era visto como nada mais que um bem material, ao qual se pode comprar e vender conforme a vontade do dono, a bem da verdade, um escravizado não era mais que um animal aos olhos da sociedade da época e a atitude da dona provavelmente se deu no intuito de se livrar do problema. Como um cavalo ou um boi que invade e danifica a propriedade de outra pessoa, isso poderia trazer problemas para ela.

Martinho foi comprado por Francisco Correia de Souza, pai de Raimundo Correia, ainda muito jovem. Sabe-se que o escravizado nasceu em Inhambupe por volta de 1846. O comprador, Franciso, foi homem influente em seu tempo, possuía a patente de alferes e em 1876, foi eleito vereador na primeira legislatura da recém-criada Vila de Bom Conselho, ao lado de Cícero Dantas Martins, o Barão de Jeremoabo.

O assassinato de Sérgio parece ter sido algo marcante para toda a comunidade, tanto é que a história foi passada de geração em geração, gerando, inclusive, um livro intitulado Bom Conselho dos Montes do Boqueirão, escrito por uma bisneta de Raimundo Correia, Telma Antonieta, em 1989.

Curioso é ver como a memória é falha e muitas partes da história foram distorcidas ao longo dos anos, o assassino é tratado no livro como Tobias e diversas passagens do trágico incidente foram ressignificados, sendo somente esclarecido com a leitura do processo na íntegra.

Na obra em questão, Sérgio é descrito como um negro inteligente e proativo, sonhador e com um improvável envolvimento amoroso com a filha do seu dono.

A cronologia dos fatos dá conta de que a briga entre os dois se deu no dia 20 de abril de 1888, onde Martinho aparentemente saiu como derrotado, no dia 05 de maio, ambos foram mandados a trabalhar na propriedade do Coronel Aristides Borges e lá, Sérgio teria zombado de Martinho, que resolveu ali mesmo levar a cabo a sua vingança. Naquela mesma noite, o assassinato aconteceria.

Martinho foi réu confesso, durante o julgamento não fez questão de se defender, apenas narrou que matou Sérgio por ele ter ele ter zombado dele e limitou-se a responder questões pontuais. As testemunhas se revezam em breves relatos, todos contavam a mesma versão dos fatos com pouquíssimos acréscimos.

A sentença saiu em 26 de setembro daquele mesmo ano, nela pontua o juiz:

 

Em vista e conformidade da decisão do juiz, julgando o réu Martinho “indiciado” no grau mínimo do art. 192 do código criminal, o condenando à pena de vinte anos de prisão com trabalho, que cumprirá na cadeia da capital e nas custas.

 

Sala de reunião do juiz da Vila de Bom Conselho, 26 de setembro de 1888.

 

O Juiz de Direito

 

Reginaldo Alves de Mello.

 

Martinho seria condenado a 20 anos de reclusão com trabalho, pegando uma pena mínima, já que o código penal da época previa o enforcamento. O fato foi noticiado pelo jornal gazeta de notícias do Rio de Janeiro, o recorte está disponível no site da hemeroteca digital e foi encontrado pelo pesquisador cicerodantense Marcelo Reis, que também me cedeu um trecho do livro Bom Conselho dos Montes do Boqueirão e outras valiosos informações que me ajudaram a compor essa história.


Fonte: Marcelo Reis.

De acordo com as memórias narradas e descritas por Telma no livro, Martinho teria vivido em Salvador após cumprir sua sentença e trabalhou como ambulante na capital.

O processo crime que apura o assassinato de Sérgio, é uma boa amostra de como se encarava a justiça por essa região no final do século XIX. De acordo com Fagner Andrade, pouca coisa do modus openrandi mudou, alguns termos são empregados no direito ainda hoje, contudo, a aplicação da lei mudou muitos nesse último século. Para se ter uma ideia, o código penal da época, que vigorou de 1831 a 1891, previa, no seu artigo 192, a pena de morte, a galés perpétua (trabalho forçado) e a pena de vinte anos de prisão em seu grau mínimo para o caso de assassinato. Martinho, como se viu, foi condenado com a pena mínima prevista no mesmo artigo.


Moisés Reis é professor, historiador e escritor. Formado em História pela Uniages e mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe. Contato: 75- 99974-2891