O foco desse blog é a pesquisa da história do Sertão baiano.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

OBRAS CONTRA A SECA PARA O MUNICÍPIO DE FÁTIMA: A INFLUÊNCIA DO PADRE RENATO GALVÃO JUNTO AO DEPUTADO DANTAS JÚNIOR.

 

Moisés Santos Reis Amaral

 

RESUMO:

 

Um padre como influente agente político e de espírito público alia-se a um importante político baiano para tentar aplacar os efeitos da seca em meio a empobrecida população da zona fronteiriça entre a Bahia e Sergipe durante os anos 1950. Dessa parceria, surge a mais importante obra contra a seca do município de Fátima até os anos 2000, o Poço Municipal, e um grande açude que ainda hoje é uma fonte de água importante para a comunidade da Queimada Grande e adjacências. Essas são conquistas importantes que suavizaram o flagelo empreendido pela seca numa época em que não existia água encanada e carro pipa era uma novidade digna da curiosidade de multidões.

 

           ABSTRACT:

 

A priest as an influential political and public-spirited agent teams up with an important Bahian politician to try to alleviate the effects of the drought among the impoverished population of the border area between Bahia and Sergipe during the 1950s. From this partnership, the most important work against drought in the municipality of Fátima until the 2000s, the Municipal Well, and a large dam that is still an important source of water for the community of Queimada Grande and surrounding areas. These are important achievements that alleviated the scourge caused by the drought at a time when there was no running water and water trucks were a novelty worthy of the curiosity of crowds.

 

OS PARCEIROS.

João da Costa Pinto Dantas Júnior nasceu em Salvador, no dia 28 de agosto de 1898, era neto do Barão de Jeremoabo e herdou do pai e o do avô o prestígio político no sertão da Bahia e de Sergipe. Nascido a 28 de agosto de 1898, foi deputado, juiz, secretário de estado e diversos outros cargos de prestígio na Bahia. Era herdeiro do capital político dos Dantas no sertão, homem influente e de amizades e respeito na aristocracia rural local e nos grandes centros urbanos do país.


              A influência da família Dantas nessa região era sustentada pelos seus aliados locais. Políticos, funcionários públicos e grandes proprietários de terras eram os líderes políticos usuais, contudo, em Cícero Dantas, o Padre Renato Galvão, vigário local entre 1945 e 1964, parece ter sido uma voz muito ouvida pelo político renomado


Renato de Andrade Galvão, nasceu em Brejões, no município de Feira de Santana, no dia 13 de julho de 1918, chegando a Cícero Dantas como um jovem sacerdote de 30 anos, em 1945. Como vigário, teve uma vida política agitada, foi prefeito da cidade de Cícero Dantas entre 1962 e 1964, fazia as vezes de padre militante, muito envolvido em questões políticas locais. Na plataforma Corpus Eletrônico Documentos do Serão, mantida pela Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS, muitas cartas trocadas entre o padre e o político dão conta de uma relação estreita. Muitas dessas missivas estão transcritas e disponíveis para os historiadores e pesquisadores em geral na referida plataforma. Nessas correspondências, é perceptível as angustias sofridas pelo vigário nas questões relativas à seca e suas nefastas consequências junto à população mais empobrecida.

Assim, muitos pedidos foram feitos pelo padre, endereçado ao político do clã dos Dantas, muitos deles, é verdade, destinados ao auxílio de pessoas locais, partidários de ambos, mas a esmagadora maioria desses, tinha como tema obras para amenizar os efeitos da seca.

 

OS DESDOBRAMENTOS DESSA RELAÇÃO:

 

               Em uma dessas oportunidade, escreveu o padre ao deputado, dizendo: “Peço a sua valiosa interferência junto ao Dr. Viana a respeito do Distrito de Monte Alverne, cuja população não tem mais água” (GALVÃO, 1955).

O apelo é feito especificamente em nome do povo de Monte Alverne, uma pequena localidade onde hoje se encontra o município de Fátima, desmembrado de Cícero Dantas pela lei estadual n.º 4413, de 01-04-1985.  

            Esse pedido, provavelmente, foi devidamente encaminhado ao governador e, como resultado prático, a construção de um dos monumentos de identificação do atual povo Fatimense, o Poço Municipal ou, “a Bomba”, como é popularmente conhecida, e que ainda hoje existe na Praça da Igreja Matriz.

            O poço que seria inaugurado 5 anos após o envio da carta (1960) ainda serve ao povo fatimense, mas a seca, como vimos, é a indesejável companhia do fatimense desde tempos imemoriais. Sazonalmente, o ciclo das chuvas apresenta baixa pluviosidade e traz sofrimento para essa terra.

A Bomba, é como o fatimense conhece o poço municipal, inaugurado em 4 de outubro de 1960. Esse poço trouxe segurança hídrica para a pacata Vila de Fátima da época, porém sua construção passou por várias fases, que foram cuidadosamente relatadas pelo Padre Renato Galvão, no livro de tombo da igreja de Cícero Dantas.

De acordo com o Vigário, uma perfuratriz foi conseguida junto ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DENOCS), em 1954, por iniciativa dele mesmo. A máquina teria vindo até Vila de Fátima com a ajuda inicial da prefeitura de Cícero Dantas, e feito diversas perfurações, algumas delas com mais de 120 metros de profundidade e não encontrou água. Sobre isso escreve o Padre:

 

Não pequeno sacrifício foi sugerido desde 1915. Várias pesquisas foram feitas e todas com resultados negativos. Em 1954, ainda por nossa iniciativa, o ministro José Américo de Almeida mandou perfurar em vários pontos desta sede paroquial. Atingiu-se a profundidade de 120 metros e foi encontrada apenas um insignificante lençol de infiltração (GALVÃO, 1955).

 

A insistência do Vigário parece ter sido mesmo o ponto de virada na saga do poço que atenderia a uma população de aproximadamente mil pessoas do distrito que só contavam com pequenos reservatórios de águas particulares[1] para o abastecimento humano, recurso absolutamente volúvel em épocas de secas mais severas. Sobre isso ele escreve:

 

Monte Alverne foi mais feliz e ninguém mais acreditava mais na possibilidade de se encontrar algum lençol abundante e permanente. A prefeitura negou-se a conceder mais o auxílio do transporte da máquina, tivemos que fornecer oito mil cruzeiros, além do fornecimento de operários (GALVÃO, 1955).

 

Note que, de acordo com o exposto, até mesmo a prefeitura de Cícero Dantas, na época, sob a administração de João Batista de Andrade Souza, de 1955 a 1958, desistiu de ajudar na obra, e o próprio Padre teve que custear o transporte da máquina e os operários. Diante disso, o religioso relatou que teve que fornecer Cr$ 8.000,00 (oito mil cruzeiros) e mais auxílio para o transporte da máquina, além do fornecimento de operários.

A insistência, contudo, deu resultado, pois, no dia 26 de agosto de 1956, a perfuratriz, depois de superar uma camada forte de granito duro com 70 metros de profundidade, atingiu um grande e rico lençol de água cristalina e potável avaliada em 6 mil litros diários. Por conta disso, houve entusiasmada festa em Vila de Fátima, com foguetes e badalar de sinos, para comemorar a chegada da água.

Ao saber da notícia, o Padre se apressou em visitar a obra, e disse: “Visitamos o local no mesmo dia e constatamos a veracidade dos fatos que o povo recebeu com regozijo público através de foguetes e repiques de sinos. Pela primeira vez, Deus louvado, um poço tubular é construído nesta terra (GALVÃO, 1955).

Após a perfuração do poço, em 1954, duas bombas manuais foram instaladas a fim de permitir que a população tivesse acesso à água, pois, como o poço é muito profundo (pelo menos 170 metros), deveria ser muito complicado e demorado fazer o bombeio manual da água. Essas bombas manuais, contudo, foram utilizadas por 5 anos, quando, em 1959, o DNOCS, após insistentes pedidos do Padre Renato Galvão, fez a instalação de uma bomba movida por um motor a diesel.

Após a inauguração, Galvão (1959) relatou que foi entregue um motor bomba e posteriormente foi construído um tanque de pedra e cimento com capacidade de 21 metros cúbicos, com quatro torneiras e uma casa de máquinas. Por essa época, a construção no entorno do poço já tinha ganhado as caraterísticas arquitetônicas atuais.

 


Pessoas na “Fila da Bomba”. Fátima, Bahia, anos 1980.

No domingo da inauguração, uma cerimônia pomposa foi organizada, sob as expressas recomendações do religioso, de não dar aos festejos, caráter político-partidário. Na ocasião, estiveram presentes técnicos do DENOCS e alguns políticos, inclusive o Deputado Federal de Ribeira do Pombal, Oliveira Brito, além de comitivas de Poço Verde, Adustina e Cícero Dantas. Quanto aos populares, de acordo com o Padre Renato, a multidão foi estimada em mais de duas mil pessoas, com direito ao corte de fita inaugural, tarefa que coube ao engenheiro Degildo Menezes, que era o chefe do 4º Distrito do DNOCS.

Ao Dr. Degildo coube também ressaltar, em discurso, a persistência do Padre na construção do poço. Ainda de acordo com o relato do religioso: “Uma criança lhe ofereceu flores”. A criança a que o vigário se refere, provavelmente trata-se da jovem Vanilda dos Reis, que atualmente vive em São Paulo. Vanilda é citada pela reportagem do jornal, que cobriu a cerimônia.

Após o corte da fita, as comitivas se dirigiram até a residência do então vereador João Maria de Oliveira, na praça ao lado da obra. Sobre isso, escreve o padre: “Na residência do vereador João Maria de Oliveira, o vigário fez oferecer aos visitantes um lanche, tendo a caravana regressado ao meio dia (GALVÃO, 1955). Vale frisar que a dimensão da festa nos dá uma ideia da importância do poço municipal para a pequena Vila de Montalverne. Se hoje uma multidão de 2 mil pessoas já é um volume considerável para a cidade Fátima, imagine há quase 70 anos.

A bomba é hoje pouco mais que um monumento, um tributo à nossa história. Embora ainda sirva de recurso para socorrer os animais nos períodos de estiagem e para aguar as plantas públicas, sua importância é somente uma fração do que fora no passado, naquele dia 4 de outubro de 1959, quando o prefeito de Cícero Dantas, em ato simbólico, ordenou que as quatro torneiras fossem ligadas para que a água jorrasse perante o grande público, parte importante da nossa história começava a ser escrita.

A imagem abaixo é a capa do Jornal da Bahia, edição de 6 de outubro de 1959, que registra a festa de inauguração da Bomba.


 

Imagem 36: Capa do Jornal da Bahia

O AÇUDE DA QUEIMADA GRANDE:

          Não se sabe muito sobre o processo de construção do açude, seus documentos, assim como boa parte do riquíssimo acervo documental do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DENOCS), foram perdidos por falta de zelo das autoridades competentes. Sabe-se, contudo, em vista da tradição oral, que o Açude da Queimada Grande foi construído por este órgão a pedido do Padre Renato, essa aguada, é mais uma das obras realizadas no então município de Cícero Dantas, como resultado da relação entre o vigário e o político influente.

            Além da oralidade, um breve relato feito pelo Padre Renato, pôde ser resgatado junto aos arquivos da paróquia de Nossa Senhora do Bom Conselho. No dia 23 de janeiro de 1950, o vigário anota no livro de ponto o seguinte registro: “O vigário celebrou em Queimada Grandes e benzeu o grande açude”.

            Em que pese ser um relato pequeno, se juntarmos a memória gerada a partir dessa construção, é possível depreendermos que foi essa a benção inicial do padre ao açude escavado como um pedido seu ao Deputados Dantas Júnior.

 

A POLÍTICA:

 

            As ações políticas da dupla (Padre Renato Galvão e Dantas Júnior) resultaram, no campo da política local, na viabilização do vigário como candidato a prefeito nas eleições de 1955. Era aquela a primeira vez que o religioso se colocava como candidato, quebrando um velho ciclo de apoio deste à poderosa família Vieira que, localmente, mantinha a hegemonia política desde o século XIX.

        Com o apoio do deputado João da Costa Pinto Dantas, o Padre Renato, como era conhecido, iniciou sua campanha política, conforme nota-se no trecho de uma das cartas trocadas entre os dois na oportunidade:

 

Acabo de regressar de Monte Alverne onde realizei na tarde de hoje grande comício no qual seu nome foi delirantemente aplaudido. Lembrei ao povo a memória do saudoso coronel Chiquinho Vieira e os benefícios da política de paz que os Dantas sempre realizaram no Nordeste. Várias adesões. Tenho sofrido ataques tremendos, inclusive ameaças e até fortes pancadas na porta altas horas da noite. Nada receio. Os ataques estão revoltando o povo que dia a dia se apavora e abandona os adversários. nunca vi adversários tão cruéis. Descobriu-se que a empregada que demiti iria envenenar-me. A vitória é certa, apesar de não dispormos de eleitorado novo e fui prejudicado, o cartório eleitoral é uma imoralidade, desaparecem títulos novos e velhos. (trecho de correspondência entre o Padre e o Deputado em 1954, Corpus eletrônico Documentos do Sertão – UEFS)

 

Em outro trecho, em virtude dos ânimos exaltados, o padre pede o envio de tropas federais para garantir a segurança e queixa-se do, agora famoso, Coronel Zé Rufino, o algoz de Corisco que residia na cidade de Jeremoabo.

 

Havendo garantias de forças federais a vitória será esmagadora. Veja se consegue forças federais para Cícero Danas, até agora não houve mortes porque tenho sido prudente. José Rufino não apareceu e é dúbio, o soldado não é amigo de ninguém.

 

          Mesmo Com o apoio do Deputado Dantas Júnior, Renato Galvão só seria eleito prefeito de Cícero Dantas, em 1962 para renunciar dois anos depois, em 1964, conforme consta em sua carta de renúncia:

 

Sacrifiquei-me até o esgotamento das energias físicas, aparentemente robustas. Encaminhei soluções de problemas fundamentais de abastecimento de água...eletrificação de Paulo Afonso, saúde e sobretudo Educação pública. Fiz o que era humanamente possível, nas limitações do cargo, do tempo e das circunstâncias. Como poder desarmado promovi a paz e a harmonia procurando antes de tudo respeitar direitos de adversários para melhor exigir-lhes a reciprocidade do mesmo respeito. Jamais deixei de viver e agir como sacerdote neste episódio que se encerra e dele saio fortalecido pela experiência para viver e realizar o ideal imperecível do Sacerdócio de Cristo. Deixo esta terra...mais pobre, mais velho e mais válido. Levo comigo ...um pouco da terra para a sepultura, os meus inseparáveis livros e a dura penitência de faltas cometidas. Ninguém... Tem o direito de interpretar este meu ato de desprendimento cívico e reparação sacerdotal como frustração, covardia e fuga.  Na obra da Educação, o operário da primeira hora nem sempre contempla a cornija do edifício.

Cidade do Salvador 07.04.1964 Pe. Renato de Andrade Galvão.

 

            A carta de renúncia do padre Renato de Andrade Galvão encerrava o seu ciclo como importante elemento da política local, mas não da sua ligação afetuosa com as terras do Bom Conselho.

Em que pese o diminuto tempo como gestor púbico municipal, sua carreira política, como vimos, se estende aos anos 1940, quando o jovem Renato de Andrade Galvão desembarca em Cícero Dantas. Sua atuação como chefe político rendeu-lhe alguns inimigos, mas muitos admiradores e os efeitos das obras contra a seca que ajudou a construir ainda hoje são sentidos por essa gente que dele não esquece.

 

Referências:

Corpus Eletrônico Documentos do Serão, UEFS.

Fátima, Traços da sua História, Moisés Reis. Aracaju, Infographics, 2022.

Livro de Tombo da Igreja de Nossa Senhora do Bom Conselho – 1945.


[1] Esses reservatórios eram basicamente tanques de chão, abertos por proprietários de terras popularmente chamados de “Fontes” pelos habitantes locais. Esses tanques eram, quando a oportunidade assim permitia, separados das aguadas destinadas ao consumo do gado e tinham um cuidado diferenciado por se destinar ao consumo humano em uma época em que água encanada era ainda um sonho distante.  Após a carta régia de 1701 que direcionou a criação de gado para o sertão, as primeiras estradas (caminhos do boi) começaram a ser abertas, eram veredas que serviam para o transporte do gado que engordava no sertão e era conduzido para o abastecimento dos mercados de carne no litoral. Quem conhece o sertão, sabe que nessa zona existem apenas duas estações, uma seca e outra chuvosa.         Essa peculiaridade climática, obrigava o poder público a construir pequenas barragens em locais estratégicos, posicionadas a cada cinco léguas ao longo do caminho. Por serem construídas pelo Estado, ficaram conhecidos como TANQUES DA NAÇÃO.

Em Fátima, ainda existe até os dias de hoje esse exemplar raro de uma obra pública muito antiga, a Nação, na qual me geração se banhou e as gerações antes de nós mataram a sua sede, é um exemplar raro, da história do sertão, ainda chamada pelo nome original mesmo após séculos de existência.

 

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