Moisés
Santos Reis Amaral
RESUMO:
Um padre como influente
agente político e de espírito público alia-se a um importante político baiano
para tentar aplacar os efeitos da seca em meio a empobrecida população da zona
fronteiriça entre a Bahia e Sergipe durante os anos 1950. Dessa parceria, surge
a mais importante obra contra a seca do município de Fátima até os anos 2000, o
Poço Municipal, e um grande açude que ainda hoje é uma fonte de água importante
para a comunidade da Queimada Grande e adjacências. Essas são conquistas importantes
que suavizaram o flagelo empreendido pela seca numa época em que não existia
água encanada e carro pipa era uma novidade digna da curiosidade de multidões.
ABSTRACT:
A priest as an influential political and
public-spirited agent teams up with an important Bahian politician to try to
alleviate the effects of the drought among the impoverished population of the
border area between Bahia and Sergipe during the 1950s. From this partnership,
the most important work against drought in the municipality of Fátima until the
2000s, the Municipal Well, and a large dam that is still an important source of
water for the community of Queimada Grande and surrounding areas. These are important
achievements that alleviated the scourge caused by the drought at a time when
there was no running water and water trucks were a novelty worthy of the
curiosity of crowds.
OS PARCEIROS.
João da Costa Pinto
Dantas Júnior nasceu em Salvador, no dia 28 de agosto de 1898, era neto do
Barão de Jeremoabo e herdou do pai e o do avô o prestígio político no sertão da
Bahia e de Sergipe. Nascido a 28 de agosto de 1898, foi deputado, juiz, secretário
de estado e diversos outros cargos de prestígio na Bahia. Era herdeiro do
capital político dos Dantas no sertão, homem influente e de amizades e respeito
na aristocracia rural local e nos grandes centros urbanos do país.
A influência da
família Dantas nessa região era sustentada pelos seus aliados locais.
Políticos, funcionários públicos e grandes proprietários de terras eram os
líderes políticos usuais, contudo, em Cícero Dantas, o Padre Renato Galvão,
vigário local entre 1945 e 1964, parece ter sido uma voz muito ouvida pelo
político renomado
Renato de Andrade Galvão,
nasceu em Brejões, no município de Feira de Santana, no dia 13 de julho de
1918, chegando a Cícero Dantas como um jovem sacerdote de 30 anos, em 1945. Como
vigário, teve uma vida política agitada, foi prefeito da cidade de Cícero
Dantas entre 1962 e 1964, fazia as vezes de padre militante, muito envolvido em
questões políticas locais. Na plataforma Corpus Eletrônico Documentos do
Serão, mantida pela Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS, muitas
cartas trocadas entre o padre e o político dão conta de uma relação estreita.
Muitas dessas missivas estão transcritas e disponíveis para os historiadores e
pesquisadores em geral na referida plataforma. Nessas correspondências, é
perceptível as angustias sofridas pelo vigário nas questões relativas à seca e
suas nefastas consequências junto à população mais empobrecida.
Assim, muitos pedidos
foram feitos pelo padre, endereçado ao político do clã dos Dantas, muitos
deles, é verdade, destinados ao auxílio de pessoas locais, partidários de
ambos, mas a esmagadora maioria desses, tinha como tema obras para amenizar os
efeitos da seca.
OS DESDOBRAMENTOS DESSA
RELAÇÃO:
Em uma dessas oportunidade, escreveu o padre ao
deputado, dizendo: “Peço a sua valiosa interferência junto ao Dr. Viana a
respeito do Distrito de Monte Alverne, cuja população não tem mais água”
(GALVÃO, 1955).
O apelo é feito especificamente em nome do povo
de Monte Alverne, uma pequena localidade onde hoje se encontra o município de
Fátima, desmembrado de Cícero Dantas pela lei estadual n.º 4413, de 01-04-1985.
Esse pedido, provavelmente, foi devidamente
encaminhado ao governador e, como resultado prático, a construção de um dos
monumentos de identificação do atual povo Fatimense, o Poço Municipal ou, “a
Bomba”, como é popularmente conhecida, e que ainda hoje existe na Praça da
Igreja Matriz.
O poço que seria inaugurado 5 anos após o envio
da carta (1960) ainda serve ao povo fatimense, mas a seca, como vimos, é a
indesejável companhia do fatimense desde tempos imemoriais. Sazonalmente, o
ciclo das chuvas apresenta baixa pluviosidade e traz sofrimento para essa
terra.
A Bomba, é como o
fatimense conhece o poço municipal, inaugurado em 4 de outubro de 1960. Esse
poço trouxe segurança hídrica para a pacata Vila de Fátima da época, porém sua
construção passou por várias fases, que foram cuidadosamente relatadas pelo
Padre Renato Galvão, no livro de tombo da igreja de Cícero Dantas.
De acordo com o
Vigário, uma perfuratriz foi conseguida junto ao Departamento Nacional de Obras
Contra as Secas (DENOCS), em 1954, por iniciativa dele mesmo. A máquina teria
vindo até Vila de Fátima com a ajuda inicial da prefeitura de Cícero Dantas, e
feito diversas perfurações, algumas delas com mais de 120 metros de
profundidade e não encontrou água. Sobre isso escreve o Padre:
Não pequeno sacrifício foi sugerido desde 1915. Várias pesquisas foram
feitas e todas com resultados negativos. Em 1954, ainda por nossa iniciativa, o
ministro José Américo de Almeida mandou perfurar em vários pontos desta sede
paroquial. Atingiu-se a profundidade de 120 metros e foi encontrada apenas um
insignificante lençol de infiltração (GALVÃO, 1955).
A insistência do
Vigário parece ter sido mesmo o ponto de virada na saga do poço que atenderia a
uma população de aproximadamente mil pessoas do distrito que só contavam com
pequenos reservatórios de águas particulares[1] para o abastecimento
humano, recurso absolutamente volúvel em épocas de secas mais severas. Sobre
isso ele escreve:
Monte Alverne foi mais feliz e ninguém mais acreditava mais na
possibilidade de se encontrar algum lençol abundante e permanente. A prefeitura
negou-se a conceder mais o auxílio do transporte da máquina, tivemos que
fornecer oito mil cruzeiros, além do fornecimento de operários (GALVÃO, 1955).
Note que, de acordo com
o exposto, até mesmo a prefeitura de Cícero Dantas, na época, sob a
administração de João Batista de Andrade Souza, de 1955 a 1958, desistiu de
ajudar na obra, e o próprio Padre teve que custear o transporte da máquina e os
operários. Diante disso, o religioso relatou que teve que fornecer Cr$ 8.000,00 (oito mil cruzeiros) e
mais auxílio para o transporte da máquina, além do fornecimento de operários.
A insistência, contudo,
deu resultado, pois, no dia 26 de agosto de 1956, a perfuratriz, depois de
superar uma camada forte de granito duro com 70 metros de profundidade, atingiu
um grande e rico lençol de água cristalina e potável avaliada em 6 mil litros
diários. Por conta disso, houve entusiasmada festa em Vila de Fátima, com
foguetes e badalar de sinos, para comemorar a chegada da água.
Ao saber da notícia, o
Padre se apressou em visitar a obra, e disse: “Visitamos o local no mesmo dia e constatamos a veracidade dos fatos que
o povo recebeu com regozijo público através de foguetes e repiques de sinos.
Pela primeira vez, Deus louvado, um poço tubular é construído nesta terra
(GALVÃO, 1955).
Após a perfuração do
poço, em 1954, duas bombas manuais foram instaladas a fim de permitir que a
população tivesse acesso à água, pois, como o poço é muito profundo (pelo menos
170 metros), deveria ser muito complicado e demorado fazer o bombeio manual da
água. Essas bombas manuais, contudo, foram utilizadas por 5 anos, quando, em
1959, o DNOCS, após insistentes pedidos do Padre Renato Galvão, fez a
instalação de uma bomba movida por um motor a diesel.
Após a inauguração,
Galvão (1959) relatou que foi entregue um motor bomba e posteriormente foi
construído um tanque de pedra e cimento com capacidade de 21 metros cúbicos,
com quatro torneiras e uma casa de máquinas. Por essa época, a construção no
entorno do poço já tinha ganhado as caraterísticas arquitetônicas atuais.
Pessoas
na “Fila da Bomba”. Fátima, Bahia, anos 1980.
No domingo da
inauguração, uma cerimônia pomposa foi organizada, sob as expressas
recomendações do religioso, de não dar aos festejos, caráter
político-partidário. Na ocasião, estiveram presentes técnicos do DENOCS e
alguns políticos, inclusive o Deputado Federal de Ribeira do Pombal, Oliveira
Brito, além de comitivas de Poço Verde, Adustina e Cícero Dantas. Quanto aos
populares, de acordo com o Padre Renato, a multidão foi estimada em mais de
duas mil pessoas, com direito ao corte de fita inaugural, tarefa que coube ao
engenheiro Degildo Menezes, que era o chefe do 4º Distrito do DNOCS.
Ao Dr. Degildo coube
também ressaltar, em discurso, a persistência do Padre na construção do poço.
Ainda de acordo com o relato do religioso: “Uma criança lhe ofereceu flores”. A
criança a que o vigário se refere, provavelmente trata-se da jovem Vanilda dos
Reis, que atualmente vive em São Paulo. Vanilda é citada pela reportagem do
jornal, que cobriu a cerimônia.
Após o corte da fita,
as comitivas se dirigiram até a residência do então vereador João Maria de
Oliveira, na praça ao lado da obra. Sobre isso, escreve o padre: “Na residência
do vereador João Maria de Oliveira, o vigário fez oferecer aos visitantes um
lanche, tendo a caravana regressado ao meio dia (GALVÃO, 1955). Vale frisar que
a dimensão da festa nos dá uma ideia da importância do poço municipal para a
pequena Vila de Montalverne. Se hoje uma multidão de 2 mil pessoas já é um
volume considerável para a cidade Fátima, imagine há quase 70 anos.
A bomba é hoje pouco mais
que um monumento, um tributo à nossa história. Embora ainda sirva de recurso
para socorrer os animais nos períodos de estiagem e para aguar as plantas
públicas, sua importância é somente uma fração do que fora no passado, naquele
dia 4 de outubro de 1959, quando o prefeito de Cícero Dantas, em ato simbólico,
ordenou que as quatro torneiras fossem ligadas para que a água jorrasse perante
o grande público, parte importante da nossa história começava a ser escrita.
A imagem abaixo é a
capa do Jornal da Bahia, edição de 6 de outubro de 1959, que registra a festa
de inauguração da Bomba.
Imagem 36: Capa do
Jornal da Bahia
O AÇUDE DA QUEIMADA GRANDE:
Não
se sabe muito sobre o processo de construção do açude, seus documentos, assim
como boa parte do riquíssimo acervo documental do Departamento Nacional de
Obras Contra a Seca (DENOCS), foram perdidos por falta de zelo das autoridades
competentes. Sabe-se, contudo, em vista da tradição oral, que o Açude da
Queimada Grande foi construído por este órgão a pedido do Padre Renato, essa
aguada, é mais uma das obras realizadas no então município de Cícero Dantas, como
resultado da relação entre o vigário e o político influente.
Além da oralidade, um breve relato feito pelo Padre
Renato, pôde ser resgatado junto aos arquivos da paróquia de Nossa Senhora do
Bom Conselho. No dia 23 de janeiro de 1950, o vigário anota no livro de ponto o
seguinte registro: “O vigário celebrou em Queimada Grandes e benzeu o grande
açude”.
Em que pese ser um relato pequeno, se juntarmos
a memória gerada a partir dessa construção, é possível depreendermos que foi
essa a benção inicial do padre ao açude escavado como um pedido seu ao
Deputados Dantas Júnior.
A POLÍTICA:
As ações políticas da dupla (Padre Renato
Galvão e Dantas Júnior) resultaram, no campo da política local, na viabilização
do vigário como candidato a prefeito nas eleições de 1955. Era aquela a
primeira vez que o religioso se colocava como candidato, quebrando um velho
ciclo de apoio deste à poderosa família Vieira que, localmente, mantinha a
hegemonia política desde o século XIX.
Com o apoio do deputado João da Costa Pinto
Dantas, o Padre Renato, como era conhecido, iniciou sua campanha política,
conforme nota-se no trecho de uma das cartas trocadas entre os dois na
oportunidade:
Acabo
de regressar de Monte Alverne onde realizei na tarde de hoje grande comício no
qual seu nome foi delirantemente aplaudido. Lembrei ao povo a memória do
saudoso coronel Chiquinho Vieira e os benefícios da política de paz que os
Dantas sempre realizaram no Nordeste. Várias adesões. Tenho sofrido ataques
tremendos, inclusive ameaças e até fortes pancadas na porta altas horas da
noite. Nada receio. Os ataques estão revoltando o povo que dia a dia se apavora
e abandona os adversários. nunca vi adversários tão cruéis. Descobriu-se que a
empregada que demiti iria envenenar-me. A vitória é certa, apesar de não
dispormos de eleitorado novo e fui prejudicado, o cartório eleitoral é uma
imoralidade, desaparecem títulos novos e velhos. (trecho de correspondência
entre o Padre e o Deputado em 1954, Corpus eletrônico Documentos do Sertão –
UEFS)
Em outro trecho, em virtude dos ânimos
exaltados, o padre pede o envio de tropas federais para garantir a segurança e
queixa-se do, agora famoso, Coronel Zé Rufino, o algoz de Corisco que residia
na cidade de Jeremoabo.
Havendo
garantias de forças federais a vitória será esmagadora. Veja se consegue forças
federais para Cícero Danas, até agora não houve mortes porque tenho sido
prudente. José Rufino não apareceu e é dúbio, o soldado não é amigo de ninguém.
Mesmo Com o apoio do Deputado Dantas Júnior, Renato Galvão
só seria eleito prefeito de Cícero Dantas, em 1962 para renunciar dois anos
depois, em 1964, conforme consta em sua carta de renúncia:
Sacrifiquei-me até o
esgotamento das energias físicas, aparentemente robustas. Encaminhei soluções
de problemas fundamentais de abastecimento de água...eletrificação de Paulo
Afonso, saúde e sobretudo Educação pública. Fiz o que era humanamente possível,
nas limitações do cargo, do tempo e das circunstâncias. Como poder desarmado
promovi a paz e a harmonia procurando antes de tudo respeitar direitos de
adversários para melhor exigir-lhes a reciprocidade do mesmo respeito. Jamais
deixei de viver e agir como sacerdote neste episódio que se encerra e dele saio
fortalecido pela experiência para viver e realizar o ideal imperecível do Sacerdócio
de Cristo. Deixo esta terra...mais pobre, mais velho e mais válido. Levo comigo
...um pouco da terra para a sepultura, os meus inseparáveis livros e a dura
penitência de faltas cometidas. Ninguém... Tem o direito de interpretar este
meu ato de desprendimento cívico e reparação sacerdotal como frustração,
covardia e fuga. Na obra da Educação, o
operário da primeira hora nem sempre contempla a cornija do edifício.
Cidade do Salvador 07.04.1964
Pe. Renato de Andrade Galvão.
A carta de renúncia do padre Renato de Andrade
Galvão encerrava o seu ciclo como importante elemento da política local, mas
não da sua ligação afetuosa com as terras do Bom Conselho.
Em que pese o diminuto tempo como gestor púbico
municipal, sua carreira política, como vimos, se estende aos anos 1940, quando
o jovem Renato de Andrade Galvão desembarca em Cícero Dantas. Sua atuação como
chefe político rendeu-lhe alguns inimigos, mas muitos admiradores e os efeitos das
obras contra a seca que ajudou a construir ainda hoje são sentidos por essa
gente que dele não esquece.
Referências:
Corpus Eletrônico Documentos do Serão, UEFS.
Fátima, Traços da sua História, Moisés Reis.
Aracaju, Infographics, 2022.
Livro de Tombo da Igreja de Nossa Senhora do
Bom Conselho – 1945.
[1] Esses reservatórios eram basicamente
tanques de chão, abertos por proprietários de terras popularmente chamados de
“Fontes” pelos habitantes locais. Esses tanques eram, quando a oportunidade
assim permitia, separados das aguadas destinadas ao consumo do gado e tinham um
cuidado diferenciado por se destinar ao consumo humano em uma época em que água
encanada era ainda um sonho distante. Após a carta régia de
1701 que direcionou a criação de gado para o sertão, as primeiras estradas
(caminhos do boi) começaram a ser abertas, eram veredas que serviam para o
transporte do gado que engordava no sertão e era conduzido para o abastecimento
dos mercados de carne no litoral. Quem conhece o sertão, sabe que nessa
zona existem apenas duas estações, uma seca e outra chuvosa.
Essa peculiaridade climática, obrigava o poder público
a construir pequenas barragens em locais estratégicos, posicionadas a cada
cinco léguas ao longo do caminho. Por serem construídas pelo Estado, ficaram
conhecidos como TANQUES DA NAÇÃO.
Em Fátima, ainda existe até os
dias de hoje esse exemplar raro de uma obra pública muito antiga, a Nação, na
qual me geração se banhou e as gerações antes de nós mataram a sua sede, é um
exemplar raro, da história do sertão, ainda chamada pelo nome original mesmo
após séculos de existência.
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