Mutirão e Memória: Gênero e Trabalho na Construção de Moradias Sertanejas.
Construir
uma casa nunca foi tarefa fácil. É necessário mão de obra especializada, uma
gama de materiais de diferentes tipos e origens para erguer uma estrutura que
possa ser habitável. Hoje, mesmo com o advento de técnicas modernas, a
construção de uma residência continua a ser um desafio para quem deseja
construir o seu próprio canto nesse nosso mundo.
Os
nossos antepassados, nesse nosso seco pedaço de chão, precisavam de um esforço
muito maior para construir suas moradias e abrigarem suas comumente numerosas
proles. Além dos fatores econômicos (é sabido que a nossa região, assim como
todo o nordeste brasileiro, foi muito mais pobre do que é hoje durante boa
parte do Império e também da República), as técnicas de construção, salve
raríssimas exceções, eram rudimentares.
Na
grande maioria dos casos, as casas seguiam o estilo de construção conhecido
como taipa ou ainda casa de pau-a-pique. Uma técnica que utilizava madeira
rústica, ou varas, alinhadas nos sentidos horizontal e vertical, criando uma
grade de madeira entrelaçada que depois tinha os vãos preenchidos com barro
para formar as paredes rudimentares a abrigar as famílias e seus raros bens
materiais.
Não há
um consenso entre os historiadores acerca da origem dessa técnica de
construção; fato é que, provavelmente, é esta originária da mescla dos estilos
arquitetônicos vindos de Portugal, técnicas indígenas e de origem africana. Foi
amplamente utilizada em todo o Brasil até as primeiras décadas do século XX,
sendo posteriormente substituída pelas casas construídas em adobe sem queima, o
adobe queimado e, mais recentemente no nosso caso, pelos blocos de cerâmica.
A
construção das casas de taipa em nossa região no início do século XX consistia
em uma verdadeira odisseia. A mão de obra precisava ser numerosa e o trabalho
era dividido por gênero. Geralmente, às mulheres, era dada a tarefa de cuidar
da comida para o mutirão e de molhar a terra para formar o barro. Aos homens
cabia cortar as varas em um matagal próximo, limpar a área e fazer a trama de
varas que consistia na estrutura principal das paredes.
Essa
divisão do trabalho, aparentemente naturalizada, insere-se num padrão mais
amplo do mundo rural. Como nos lembra Ecléa Bosi (1994), a memória social das
comunidades camponesas guarda marcas de uma organização do trabalho que
reforçava papéis de gênero distintos, mas interdependentes. Da mesma forma,
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973), em seus estudos sobre comunidades
tradicionais, observa que a vida sertaneja era estruturada pela
complementaridade entre homens e mulheres: os primeiros associados à lida
pesada, os segundos ao sustento da vida cotidiana e à preparação coletiva.
É
importante frisar que o trabalho feminino, embora invisibilizado, era
indispensável. Michelle Perrot (2007), ao discutir a história das mulheres,
enfatiza que grande parte das atividades desempenhadas por elas eram vistas
como extensões “naturais” do cuidado, mas constituíam de fato o sustentáculo da
vida material. No sertão, esse papel se manifestava de forma clara: sem o alimento
preparado para os mutirões e sem o barro devidamente molhado, a casa
simplesmente não se ergueria.
Assim,
a construção de uma moradia, longe de ser apenas um ato técnico, era também uma
cena de sociabilidade e de reforço das hierarquias de gênero. Ao mesmo tempo em
que confirmava a centralidade masculina na lida física, reiterava a
indispensabilidade feminina na manutenção e continuidade da vida.
Em
Fátima, temos um rico relato de uma dessas construções fornecido pela fatimense
Maria Soledade do Nascimento, conhecida popularmente como “Dona Brinco”. Em
entrevista concedida ao pesquisador Juan Kléber Menezes em novembro de 2018,
Dona Brinco, portadora de uma memória invejável, narra a construção da casa de
seus pais em meados dos 1940.
Segundo
relata a entrevistada, seu pai trabalhou como tropeiro e juntou dinheiro
durante longo período em uma lata feita de cofre. O dinheiro era necessário
para comprar “somente” as telhas produzidas em olarias e também os pregos, pois
os caibros, ripas e, claro, o barro, eram encontrados nos arredores do próprio
canteiro de obras. Daí em diante, era preciso garantir que os vizinhos, amigos
e parentes que viriam ajudar, ou dar um digitório na obra, tivessem uma carne
de criação (carneiro ou bode) para comer.
Quando
suspeitou que já havia juntado a quantia necessária para comprar o material, o
pai de Dona Brinco e de numerosa prole iniciou a construção. Entretanto, mesmo
contando com numerosa ajuda, o dinheiro não foi suficiente e ele teve que
contar com a solidariedade de amigos de Adustina que vieram ajudar no término
da sua casa. Na ocasião, um amigo se solidarizou com a luta do sertanejo e
trouxe um grande número de trabalhadores e ainda um carneiro para alimentar a
todos e finalmente concluir a casa onde a família moraria por muitos anos.
Contar
a história de uma família específica e de um caso tão pontual como a construção
de uma casa pode parecer, em um primeiro momento, algo demasiadamente trivial
para quem assumiu a tarefa de escrever história. Entretanto, é necessário sensibilidade
para perceber que esta história é um valioso retrato do passado de milhões de
sertanejos que passaram pela mesma situação. Essa passagem da história de uma
família de Fátima, cujos descendentes hoje integram a sua população, serve como
um registro para que as gerações contemporâneas e futuras compreendam a vida
nua e crua dos seus antepassados e afinem sua identificação com a memória
coletiva de sua gente.
Referências utilizadas
BOSI, Ecléa. Memória e
sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
PEREIRA DE QUEIROZ, Maria
Isaura. O campesinato brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1973.
PERROT, Michelle. As mulheres
ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2007.
Moisés Reis é
professor há 24 anos no município de Fátima (BA). Licenciado em História pela
UNIAGES, com especialização em História e Cultura Afro-Brasileira pela
UNIASSELVI, é mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe
(UFS). Autor de diversas obras, entre elas Manual
Didático do Professor de História, O Nazista, Fátima:
Traços da sua História, O
Embaixador da Paz, Maria
Preta: Escravismo no Sertão Baiano e Últimos Cangaceiros: Justiça, Prisão e Liberdade.
Também produziu a HQ Histórias
do Cangaço e o documentário Identidade
Fatimense. Sua pesquisa concentra-se na história do sertão baiano,
com ênfase na sociedade do couro, nos processos de ocupação, nas relações de
poder e nas memórias coletivas da região.
Contato: 75 999742891
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