Entre a cruz e o fuzil: povoamento, poder e violência no Semiárido Nordeste II
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Em meados do século XIX, o regime de
sesmarias ainda regia a relação do homem comum com a terra no Brasil. Nesse
sistema, herdado do período colonial, o Estado português concedia o direito de
posse a quem se comprometesse a ocupar e produzir. Na prática, apenas a Coroa
era a proprietária efetiva: os ocupantes eram posseiros e deviam forro à
monarquia.
Com a
independência, em 1822, esse regime entrou em crise. Somava-se a isso a
decadência de antigas casas senhoriais, como a Casa da Torre, que perderam
parte de sua influência no interior nordestino. Nesse contexto, a promulgação
da Lei de Terras (1850) redefiniu a relação com o solo: a terra transformou-se
em mercadoria, acessível apenas mediante compra. O objetivo era claro — excluir
imigrantes pobres e ex-escravos do acesso à terra, reservando-a às elites
endinheiradas e consolidando ainda mais as desigualdades sociais.
No
sertão fronteiriço da Bahia com Sergipe, esse processo ganhou corpo a partir
dos registros conduzidos pela Igreja, principal representante do Estado em
regiões distantes. O vigário de Cícero Dantas, Caetano Dias da Silva, foi
responsável por legalizar dezenas de propriedades, como Mundo Novo, São
Domingos, Barriguda, Maria Preta e Serra Velha. Ali, agricultores com recursos
suficientes formalizaram suas posses, estruturando uma economia baseada na
pecuária extensiva e na agricultura de subsistência, sustentada pelo trabalho
escravo. Enquanto o Sudeste enriquecia com o café, o sertão baiano consolidava
um modelo de exploração mais rudimentar, mas igualmente hierárquico e
excludente.
Esse
arranjo social produziu tensões profundas. Sem acesso à terra — única fonte de
sobrevivência —, grande parte da população foi marginalizada, enquanto os
proprietários fortaleciam seus domínios. A violência, nesse cenário, tornou-se
reguladora das relações sociais: disputas por honra, emboscadas e vinganças se
tornaram comuns. Antes mesmo do cangaço ganhar fama com Lampião, jagunços como
João Geraldo e Davi espalhavam terror pela região de Cícero Dantas. Grandes
proprietários, por sua vez, organizavam exércitos particulares, tornando-se a “lei
do sertão”. Mais tarde, a convergência entre desterrados e bandoleiros
alimentaria as fileiras do cangaço, cuja ascensão na década de 1920 encarnava a
continuidade de um ciclo secular de violência.
A
história da formação de municípios como Fátima, e de outras povoações do
Semiárido Nordeste II, condensa em escala regional os traços estruturais da
formação do Brasil: concentração de renda, uso da violência como forma de poder
e consolidação de redes oligárquicas. Nesse terreno, famílias como os Dantas,
Correias, Vieiras, Reis, Borges e Félix consolidaram-se como clãs dominantes,
capazes de articular interesses privados e públicos e de moldar, a seu favor,
tanto a terra quanto a política.
Moisés Reis é
professor há 24 anos no município de Fátima (BA). Licenciado em História pela
UNIAGES, com especialização em História e Cultura Afro-Brasileira pela
UNIASSELVI, é mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe
(UFS). Autor de diversas obras, entre elas Manual Didático do Professor de História,
O
Nazista, Fátima: Traços da sua História, O
Embaixador da Paz, Maria Preta: Escravismo no Sertão Baiano
e Últimos
Cangaceiros: Justiça, Prisão e Liberdade. Também produziu a HQ Histórias
do Cangaço e o documentário Identidade Fatimense. Sua
pesquisa concentra-se na história do sertão baiano, com ênfase na sociedade do
couro, nos processos de ocupação, nas relações de poder e nas memórias
coletivas da região.
Contato:
75 999742891

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