CARTA DE SEVERO CORREIA, 1898.


 O documento a seguir é uma amostra valiosa de como era a vida na região há 127 anos. À época, homens de negócios se comunicavam pelas vias possíveis, já que o serviço de correios só seria criado oficialmente em 1969. As cartas — ou “missivas”, como se dizia — eram enviadas por “positivos”, isto é, portadores de confiança. Esse serviço podia ser realizado por funcionários de fazendas, conhecidos que estivessem prestes a viajar ou até mesmo por tripeiros (comerciantes ambulantes).

A carta foi escrita por Severo Correia de Souza, da Fazenda Maria Preta, localizada onde hoje funciona o Pisa Macio. O destinatário era Cícero Dantas Martins, o Barão de Jeremoabo, que, ao que tudo indica, estava hospedado em sua propriedade no Bom Conselho — provavelmente no sobrado onde hoje está instalada a Rádio Regional, edifício no qual faleceria alguns anos depois.

Um dos pontos mais relevantes do documento é a disputa por terras. Em uma região afastada dos grandes centros urbanos e com limites territoriais pouco definidos, conflitos desse tipo eram extremamente comuns. O clima, muitas vezes, tornava-se tenso e não era raro que os desentendimentos terminassem em violência. No texto, percebe-se que Raimundo Correia de Souza, irmão de Severo e figura influente, chega a comparar Félix — um dos envolvidos na contenda — ao “novo Conselheiro”, em alusão direta a Antônio Conselheiro, líder da Guerra de Canudos, falecido poucos meses antes.

Outro detalhe interessante citado por Severo é a obra em andamento na Fazenda São Domingos, propriedade do Barão que estava arrendada por ele. O autor também menciona que estava doente de “antrazes”, provavelmente uma infecção de pele comum na época, especialmente em regiões de criação de gado, caracterizada por múltiplos furúnculos e bastante desconforto.

Abaixo, segue o texto original da carta na íntegra:


Maria Preta, 9 de outubro de 1898

Exmo. Sr. Barão de Jeremoabo,

Às pressas lhe escrevo para ver se acho quem vá para o Bom Conselho. Fui ao José Luís logo que recebi sua carta e com ele conversei sobre o Félix. Antes disso, fui ao velho Borges para ver se o Félix tirava o gado, mas ele, Borges, nada pôde resolver. Diz o Félix que, absolutamente, não tira o gado; o velho pediu muito, porém não foi atendido.

Depois fui ao Virge, e este disse-me que não se metia nisso. O Félix disse ao José Dezidério, vaqueiro de São Domingos, que “quem botasse cachorro no gado dele, que matava, tanto lhe aparecesse de chumbo”. Estão os vaqueiros todos temorizados, dizem que não brigam, e disse-me o Virge que assim falou Raimundo: “É um segundo Conselheiro.”

Sobre o retiro, não retiram por ora, porque têm caído umas chuvinhas; vamos ver em que fica, para então determinar. Há poucos dias lhe escrevi sobre meu negócio, e hoje nada tenho a dizer, pois ainda não obtive resposta do vigário.

Estou tirando a lama de São Domingos a toda pressa e horror, lugares de nove palmos e lugares de oito. Hoje fui lá ver o serviço.

Tenho estado muito doente, de antrazes, e parece-me sarna; estou em remédio.

Dê as muitas visitas a todos. De seu amo grato, muito obro.

Severo Correia de Souza

P.S.: Não vi o cavalo do José Neves porque está em Simão Dias, porém esta semana o José vai buscá-lo para ver se negocio.

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