Sertão violento, crime e escravidão
No
distante ano de 1858, uma mulher identificada apenas como Maria, escravizada de
Pedro José de Matos, foi duramente castigada por um fazendeiro residente em Cícero
Dantas.
Enfurecido pela tentativa de fuga de sua cativa, Pedro José ordenou a um
funcionário que a castigasse exemplarmente.
Essa
história é revelada pelo processo nº 03/91/09, sob guarda do Arquivo Público do
Estado da Bahia (APEB).
Suas páginas amareladas mostram que, após o castigo, a mulher adoeceu
gravemente.
As testemunhas afirmaram que as costas da escrava ficaram em carne viva, e que
as feridas se estendiam pelas pernas e pelos braços, havendo grande perda de
sangue.
Ainda
segundo os depoimentos, o fazendeiro — talvez movido por arrependimento, ou
apenas pelo temor de perder um “bem” valioso — ordenou que fossem ministrados
remédios e cuidados à cativa.
Mesmo assim, deixada em sua cabana de taipa coberta de palha, Maria agonizou
durante três dias, até ser encontrada morta.
Levado
a julgamento, Pedro José de Matos foi considerado culpado por homicídio culposo,
mas teve a pena atenuada pela justiça escravocrata vigente.
As testemunhas arroladas contribuíram para suavizar a culpa do réu.
José
Gonçalves de Sá — lavrador, possivelmente ancestral do coronel João Sá — declarou
ter visto a escrava com marcas de açoite, embora ainda caminhando e falando até
a véspera de sua morte; afirmou crer que ela falecera por fraqueza, e não pelas
chibatadas.
Maria Joaquina, crioula livre, disse ter presenciado o castigo e confirmado que
o senhor, após ordenar a punição, mandara também que lhe dessem remédios; a
mulher, contudo, ficou enferma e morreu em três dias.
Francisco de Assis Pinto, morador próximo, relatou ter ouvido gritos durante o
castigo e visto, depois, a escrava caída no chão, ferida, porém viva — não
sendo mais vista em público a partir de então.
Diante
das provas, o Promotor Público opinou que, embora houvesse excesso, não se
comprovava a intenção de matar, sendo a morte resultado imprevisto do castigo.
Assim, aplicou-se o artigo 193, §3º, do Código Criminal de 1830, que previa
punição para “homicídio involuntário por excesso de correção”.
A
decisão do juiz seguiu o mesmo raciocínio.
O doutor Antônio Telles da Silva Lobo Júnior, juiz de direito da comarca,
declarou:
“Vistos
e examinados estes autos, declaro que o réu incorreu em culpa por excesso de
castigo, do qual resultou a morte da escrava, sem, contudo, ter havido dolo ou
premeditação.
Considerando a índole do réu, homem de boa conduta e sem antecedentes, e o
arrependimento demonstrado, aplico-lhe a pena de dois anos de prisão simples,
conforme o artigo 193, §3º, do Código Criminal.
Ordeno que se recolha à cadeia da Vila de Jeremoabo e, cumprida a pena, goze de
liberdade plena. Publique-se. Registre-se.”
O
julgamento, ocorrido em Jeremoabo, foi encerrado em 20 de outubro de 1858.
Seu resultado evidencia a forma como os tribunais imperiais tratavam os crimes
contra pessoas escravizadas.
A morte de Maria foi enquadrada sob a fórmula jurídica de “excesso de castigo”,
expressão recorrente nas decisões do período.
O tom moralizador do juiz — ao descrever o acusado como “homem de boa índole”,
“sem intenção de crueldade” — repete a retórica benevolente que a justiça
reservava aos senhores de escravos.
Este
caso é mais um retrato contundente da brutalidade do sistema escravista
brasileiro, que no sertão baiano assumia contornos ainda mais cruéis:
um mundo onde a morte de uma mulher negra, açoitada até o limite da
sobrevivência, pôde ser reduzida a um “erro disciplinar”, perdoável aos olhos
da lei.
Moisés Reis é
professor há 24 anos no município de Fátima (BA) e Membro da ABLAC (Academia
Brasileira de Letras e Arte do Cangaço). Licenciado em História pela UNIAGES,
com especialização em História e Cultura Afro-Brasileira pela UNIASSELVI, é
mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Autor
de diversas obras, entre elas Manual
Didático do Professor de História, O Nazista, Fátima:
Traços da sua História, O
Embaixador da Paz, Maria
Preta: Escravismo no Sertão Baiano e Últimos Cangaceiros: Justiça, Prisão e Liberdade.
Também produziu a HQ Histórias
do Cangaço e o documentário Identidade
Fatimense. Sua pesquisa concentra-se na história do sertão baiano,
com ênfase na sociedade do couro, nos processos de ocupação, nas relações de
poder e nas memórias coletivas da região.
Contato: 75 999742891
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