Homicídio na Lagoa da Volta, 1858.
O
sertão sempre foi um lugar de tensões e violência, uma terra dura que gerou
homens duros, que viam na autodefesa uma forma legítima de sobrevivência. Como
já discutido inúmeras vezes aqui no Blog, as rusgas entre fazendeiros, meeiros
e boiadeiros costumavam ser resolvidas na ponta da faca ou na boca do
bacamarte.
Um exemplo eloquente dessa afirmação ocorreu no dia 20 de setembro de 1858. No processo, consta apenas que o corpo de um certo Pedro Correia foi encontrado “às margens de um pequeno açude, nos limites da Fazenda Mocó”.
Por
se tratar de um indivíduo pertencente à família Correia, não é difícil imaginar
que o caso tenha ocorrido mesmo na Lagoa da Volta, como consta no documento.
Contudo, o final da descrição do local do assassinato reporta que teria sido
“nos limites da Fazenda Mocó, às margens de um pequeno açude”. Como é de
conhecimento de quem acompanha o Blog, “Mocó” era como se chamava a atual área
urbana de Fátima e, a meio caminho entre a cidade e a Lagoa da Volta, temos o
atual Açude dos Cantos, que à época poderia já existir e ter sido o palco desse
ocorrido. Mas isso é apenas suposição. O que pretendo aqui é me ater ao que
consta no documento e tentar compreender como nossos ancestrais viviam, fazendo
uso das fontes que temos em mãos — neste caso, um processo-crime de homicídio.
O
assassino, Pedro Rodrigues Amado, e a vítima, Pedro Correia, viviam em rusgas
por conta de disputas envolvendo gado, como se pode notar a partir do
depoimento de uma das testemunhas:
Antônio
Dias da Silva, 60 anos:
“Eram
inimigos antigos, por conta de um negócio de bezerros. Já tinham se pegado
outras vezes. Ninguém esperava que chegasse a tanto.”
Na
época, o enorme tamanho das propriedades e sua fragilidade financeira
impossibilitavam o cercamento da maioria das terras, levando os fazendeiros a
criarem gado solto nas pastagens. A invasão de uma rês a uma e outra
propriedade não era rara, levando a intrigas que potencialmente terminavam em
tragédias.
No
interrogatório, o réu foi identificado como sendo pardo, com aproximadamente 40
anos, casado e agricultor. Sua naturalidade foi identificada apenas como
“nascido no termo do Bom Conselho”. Isso significa que, provavelmente, ele
nasceu na mesma região (Lagoa da Volta), em algum momento ainda no início do século
XIX.
Outra
testemunha, Francisco Xavier de Matos, 48 anos, afirmou:
“Vi
quando discutiam; o morto chamava o réu de ladrão de gado. O Pedro Rodrigues
mandou que se calasse, mas o outro veio pra cima dele. Só vi o clarão da faca e
o homem tombando no chão.”
Já
José Ambrósio de Souza, 55 anos, lavrador, contou da seguinte forma o que
presenciou:
“Ouvi
o barulho e, quando cheguei, o homem já estava caído. O Pedro Rodrigues Amado
dizia que o outro lhe viera com ferrão, que apenas se defendeu.”
Como
se pode depreender dos relatos acima, o fato foi presenciado de forma ocular
por algumas pessoas, indicando que ocorreu em um pequeno arruado ou em alguma
outra aglomeração de natureza desconhecida. O que consta é que, após uma
discussão por conta de uma novilha, Pedro Rodrigues tirou a vida de Pedro
Correia com uma faca e teria demonstrado arrependimento imediato, o que, como
veremos, vai servir como atenuante de sua pena.
De
acordo com o exame de corpo de delito, realizado por José Ribeiro Araújo e Antônio
Xavier dos Santos, a facada foi do lado esquerdo do peito e perfurou o pulmão
da vítima, causando-lhe a morte imediata.
O
Promotor Público, Dr. Joaquim de Almeida Brito, acusou o réu de homicídio
doloso, argumentando que, ainda que provocado, agiu com vontade de matar,
“usando arma de corte em região letal”.
A
defesa, feita pelo advogado José Alves de Azevedo, sustentou que houve legítima
defesa, alegando o “ímpeto natural de um sertanejo em proteger sua honra e sua
integridade”.
“Vistos
e examinados estes autos, em que é réu Pedro Rodrigues Amado, acusado de haver
tirado a vida de Pedro, dito Correia, na freguesia de Bom Conselho, julgo
procedente em parte a denúncia, reconhecendo que o réu cometeu homicídio, porém
em estado de provocação injusta e imediata, configurando-se, pois, crime de
homicídio simples, com circunstâncias atenuantes de legítima defesa
parcial.”
Condeno
o réu Pedro Rodrigues Amado a três anos de prisão com trabalho, a cumprir na
cadeia da Comarca de Jeremoabo, “atento ao seu bom procedimento e
arrependimento sincero.”
“E
por ser verdade, mandei lavrar o presente termo, que assino.”
Jeremoabo,
12 de dezembro de 1858.
Antônio
Telles da Silva Lobo Júnior
Juiz
Municipal e de Órfãos da Comarca de Jeremoabo
O
processo ilustra a tensão social e a violência endêmica no sertão de meados do
século XIX, em um contexto onde a justiça era exercida em meio a relações de
vizinhança, honra e poder local.
A
pena branda imposta a Pedro Rodrigues Amado reflete a mentalidade do período —
o valor da vida de um homem pobre era menor que o da estabilidade social de um
fazendeiro.
O episódio
ocorrido na Lagoa da Volta em 1858 não se restringe, portanto, à morte de um
homem e à condenação branda de outro. Ele revela um modo próprio de administrar
conflitos em uma sociedade onde as fronteiras entre o público e o privado, o
legal e o costumeiro, eram fluidas. No sertão, a justiça estatal convivia — e
frequentemente se confundia — com uma justiça de vizinhança, na qual as noções
de honra, reputação e reciprocidade pesavam mais que os códigos formais.
Essa dinâmica
confirma o que Maria Sylvia de Carvalho Franco observou em Homens livres na
ordem escravocrata (1969): entre os pequenos proprietários e trabalhadores
livres pobres, a violência cotidiana constituía um mecanismo de afirmação moral
e social, não apenas um desvio. A defesa da honra, a resposta imediata à ofensa
e o medo de ser visto como fraco compunham um código de sobrevivência coletiva
— um código que, no sertão, prolongou-se até o século XX.
Do mesmo modo,
Frederico Pernambucano de Mello (2004), ao estudar as guerras de família e o
cangaço, demonstra que o sertanejo herdou uma tradição de “justiça armada”, em
que o bacamarte ou a faca eram extensões do próprio corpo moral. A sentença de
Pedro Rodrigues Amado, atenuada pela justificativa da “provocação injusta”,
traduz esse ethos: a lei imperial reconhecia, ainda que implicitamente, o valor
cultural da autodefesa masculina e da honra familiar.
A
micro-história desse processo permite enxergar o que Carlo Ginzburg (1989)
chama de “rastros da mentalidade” — elementos sutis que, lidos nas margens dos
autos, revelam como o poder e a moral se organizavam localmente. Nesse sentido,
o sertão de Jeremoabo não aparece apenas como cenário de barbárie ou atraso,
mas como espaço de negociação simbólica entre a norma jurídica e o costume. O
que para o juiz era homicídio atenuado, para a comunidade podia significar
restauração da honra ou cumprimento de uma justiça mais íntima.
Casos como
esse demonstram que compreender o sertão oitocentista exige ir além das
categorias legais e penetrar nas tramas das relações pessoais. O crime de Pedro
Rodrigues Amado, assim como tantos outros registrados nos livros criminais da
Bahia interiorana, evidencia uma sociedade onde a violência não era exceção,
mas linguagem — uma forma de dizer e de ser ouvido num mundo de hierarquias
rígidas e poderes desiguais.
Moisés
Reis é professor há 24 anos no município de Fátima
(BA) e Membro da ABLAC (Academia Brasileira de Letras e Arte do Cangaço).
Licenciado em História pela UNIAGES, com especialização em História e Cultura
Afro-Brasileira pela UNIASSELVI, é mestre em Ensino de História pela
Universidade Federal de Sergipe (UFS). Autor de diversas obras, entre elas Manual Didático do Professor de História,
O Nazista, Fátima: Traços da sua História,
O Embaixador da Paz,
Maria Preta: Escravismo no
Sertão Baiano e Últimos
Cangaceiros: Justiça, Prisão e Liberdade. Também produziu a HQ Histórias do Cangaço e o
documentário Identidade
Fatimense. Sua pesquisa concentra-se na história do sertão baiano,
com ênfase na sociedade do couro, nos processos de ocupação, nas relações de
poder e nas memórias coletivas da região.
Contato:
75 999742891

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