Moisés Reis
Resumo:
O
presente trabalho busca discorrer sobre a dinâmica de povoamento da área
fronteiriça entre a Bahia e Sergipe com informações colhidas a partir de
documentação primária. Aqui buscamos demonstrar que, ao contrário do que se
acreditava, a região já tinha uma ocupação significativa durante boa parte do
século XIX.
Poucos
estudos até o presente momento se debruçaram sobre a chegada dos primeiros
homens brancos a acessarem a área que hoje é chamada de Semiárido Nordeste II,
no Estado da Bahia. Dessa forma, as informações que o pesquisador interessado
nessa temática encontra são igualmente escassas, sobretudo na literatura
especializada.
Alguns estudos, contudo, podem servir de base em um
esforço de se chegar ao entendimento nesse assunto. Um deles é, sem dúvidas, a
obra Entre
Padres e Coronéis: Como as disputas oligárquicas deram forma ao município de
Paripiranga, do sociólogo paripiranguense Antônio Carregosa, lançado
em 2019. Outro estudo nesse sentido e que propõem uma visão acerca dessa
ocupação é Fátima, Traços da sua História, de Moisés Reis, lançado em
2022.
No universo além das duas obras acima citas, temos
diversas obras memorialistas, como Reminiscências do Bom Conselho, de
Gildo Dantas de Souza, lançado em 2008, Fátima, Nossa Terra Nossa Gente de
Edna Borges, lançado em 2009, além de obras que, por ter outros focos e
recortes de pesquisas, tratam do objeto de estudo que aqui colocamos em
questão, de forma indireta.
Um ponto de convergência entre as obras acima citadas, é
a ideia de que núcleos de povoamento como a atual sede do município de
Paripiranga, antiga Patrocínio do Coité e do atual município de Cícero Dantas,
antiga Bom Conselho e demais cidade antigas como Jeremoabo, Tucano e outras já
têm registrada a presença de não indígenas desde princípios do século XIX, no
caso de Jeremoabo especificamente, do século XVII.
Essas pesquisas, contudo, deixam de abordar, ou o fazem
de forma superficial, as áreas vicinais, as fazendolas e pequenos pontos de
passagem da estrada real ao longo do percurso nos rincões dessa área sertaneja.
Para ser mais específico, eu me dedicarei no presente
esforço, a tratar do mesmo processo de ocupação, voltado ao município de Bom
Conselho e para ser mais específico ainda, tratarei aqui, da área territorial
que hoje pertence ao município de Fátima, desmembrado de Cícero Dantas pela lei
estadual n.º 4413, de 01-04-1985.
O município de Cícero
Dantas, tinha, na data da sua elevação a tal posto, a configuração observada na
figura 1 e foi, ao longo dos anos, sendo desmembrado em municípios menores,
conforme se observa na figura 2:
Figura 1: Município de Cícero Dantas, Bahia, 1875.
Figura 2: Município de Cícero Dantas, desmembrado.
Reis (2022), ao tratar da ocupação da zona
pertencente atualmente à Fátima, afirma
que tal processo deu-se, nessa zona fronteiriça entre Bahia e Sergipe, mais
tardiamente, para ele, a área compreendida por toda a extensão do município,
foi ocupada por fazendolas antigas como a Maria Preta e outras unidade
agrícolas espalhadas por toda a atual municipalidade ao longo da segunda metade
do século XIX e que a atual área da sede do município esteve desabitada até a
década de 1920, conforme se vê no trecho abaixo:
O atual território da
sede do município de Fátima era dividido basicamente por duas fazendas, a
Fazenda Boa Vista, que seria adquirida mais tarde (anos 1920) por Ângelo, e a
fazenda Maria Preta, de Propriedade do Severo Correia de Souza. (Reis, 2022. P.
51).
Antes
de avaliarmos a afirmação, é preciso que se diga que, após o lançamento da
referida obra, novos dados foram descobertos, sobretudo a partir de
documentação primária, o que mudou substancialmente esse entendimento.
Em
estudos recentes, novas evidencias nos mostram que a ideia de que a atual zona
urbana do município de Fátima só foi ocupada de forma efetiva a partir dos anos
1920 está equivocada e algumas evidências que serão apreciadas agora, nos
ajudam a sustentar essa assertiva, a primeira delas, um processo crime,
resultante de um homicídio praticado em 1919 na atual rua João Lucino, nas
imediações da praça primordial do mesmo município, a Praça Ângelo Lagoa.
Era
uma tarde de 18 de dezembro de 1919 quando tiros são ouvidos no local que, à
época, era conhecido como “Baixa do Coelho”. Estava sendo consumado naquele
momento, um crime de vingança contra João Lucindo de Souza. Os agressores, pelo
menos nove homens que moravam em áreas adjacentes, cumpriam uma trama iniciada
meses antes que tinha como enredo um defloramento de uma sobrinha da vítima,
acompanhado por uma agressão seguida de castração como vingança do
defloramento. O assassinato, como dito, fechava esse ciclo macabro e dava
início ao processo-crime que nos revelou preciosos dados acerca da ocupação do
que hoje é a sede de Fátima.
Seguindo
o progresso corriqueiro do processo, após o indiciamento dos acusados e temas
preliminares, a promotoria arrola as testemunhas e seus depoimentos são a nossa
principal fonte nesse momento.
Antes
de ingressar nos depoimentos propriamente ditos, uma digressão é necessária a
fim de registrar que, se já havia, em 1919, uma sociedade formada na área, com
laços familiares e de amizade consistentes ao ponto de ser tramado tal ato
vingança, significa que aquelas pessoas já habitavam aquela região e conviviam
em comunidade há alguns anos. Os dados que analisaremos abaixo nos ajudam a
sustentar essa hipótese.
Entre
os depoimentos dados na época, está o de uma moradora vizinha ao local do crime
que reporta ter socorrido a viúva de João Lucindo que viajava com ele e que,
por pouco, não foi também assassinado junto com o marido. Vejamos o relato:
Theodora
Maria das Virgens, 31 anos, nascida em 1891, casada, moradora da laje.
Perguntada sobre os fatos, disse que estava em casa, quando ouviu o barulho dos
tiros e uma mulher gritando por socorro (trecho ilegível) um grupo de homens
armados que lhe disse: vai olhar para João Lucindo que está de pernas para cima
ali na estrada morto para servir de testemunha? E chegando no lugar onde estava
a vítima, encontrou a viúva, estando como morto João Lucindo. Viu uma turma de
homens armados, não sabendo as armas (trecho ilegível) umas espingardas e
outros – Respondeu não saber quem mandasse praticar o crime – respondeu que
estima os acusados como amigos, mas que ultimamente tiveram uma rusga e ficaram
inimigos, não sabendo exatamente a razão – respondeu que a vítima tinha por
procedimento trabalhar muito.
Eis
aqui um relato consistente de alguém nascido na atual zona urbana do município
no final do século XIX, um documento confeccionado sub juramento e com pouca
margem para falsificações.
Mas
essa não é a única evidência, no mesmo processo, temos outros depoimentos que
servem ao mesmo propósito. Pedro Félix de Oliveira, 30 anos na época, nascido
em 1892, na Laje da Boa vista é mais um depoente do caso, nascido nos arredores
da atual sede do município.
No
mesmo processo, dois dos acusados eram moradores da fazenda pedrinhas, zona
rural de Fátima, e são também prova da ocupação dessa área ainda no século XIX.
Os irmãos são João Porfírio dos Reis, na
época com 32 anos e Joaquim Francisco dos Reis, na oportunidade com 44 anos.
Ambos, filhos de Manoel Felipe dos Reis.
No documento acima citado, os irmãos afirmam ser naturais
das Pedrinhas, mas não reportam se o seu pai ali nasceu ou não. Tomando como
base a idade do mais velho, Joaquim, é possível depreender que este nasceu
1878, na propriedade mantida pela família onde hoje é a comunidade das Pedrinhas.
Um
outro documento de suma importância para fundamentar a tese do povoamento
antigo de Fátima é um inventário confeccionado a 17 de julho de 1942. O
documento arrola os bens da falecida Porfíria Maria de Jesus, esposa de Ângelo
José de Souza, o fundador da cidade. Ângelo, que contava na época com 74 anos
de idade, assina o inventário que traz a lista dos filhos do casal, são quinze
filhos, nove dos quais, nascidos na atual praça que leva o nome do fundador,
ainda no século XIX.
Talvez
o exemplo mais eloquente desse povoamento é Severo Coreia de Souza, fazendeiro
dono da Maria Preta, uma fazenda que criava gado e dispunha de mão de obra
escrava. As terras de Severo, membro da poderosa família Correia, se
localizavam onde hoje é o bairro do Pisa Macio. Existem informações
consistentes sobre Severo e a Maria Preta. Talvez a coletânea de documentos
primários que nos fornece mais dados é o acervo do Museu do Nordeste, em
Itapicuru, Bahia.
O
museu que funciona no antigo solar erguido por Cícero Dantas Martins, o Barão
de Jeremoabo em 1894 guarda grande acervo de documentos antigos guardados pela
família Dantas. Entre a documentação lá armazenada está o caderno de notas do
Barão, onde ele fez anotações de nascimento, casamentos e falecimentos de
amigos e parentes. Por intermédio dessa documentação e do livro Cartas para
o Barão de Consuelo Novais, descobri que Severo Correia de Souza era
tenente da guarda nacional e que se correspondia com frequência com o Barão de
Jeremoabo. Em uma das cartas enviada por severo ao Barão, tratam de questões de
terras e negócios, a missiva, inclusive, foi publicada no livro acima citado.
Através dos dados colhidos do enorme acervo deixado pela
Barão, descobrimos que Severo se casou no dia 30 de setembro de 1861 com Líbia,
da qual o sobrenome desconhecemos. Líbia não tinha completado ainda os 12 anos
quando se casou pois, sua data de nascimento é 11 de dezembro de 1849. O casal
teve dois filhos, João Severo de Souza, nascido em 14 de julho de 1869 e
Francisca de Souza, nascida em 21 de setembro de 1890.
Severo, que era amigo do Barão, se correspondia com o
fidalgo por carta. Uma dessas correspondências faz parte do acervo Corpus
Eletrônico Documentos do Sertão, mantido pela Universidade de Feira de Santana.
A carta, escrita por Severo é datada de 1898. Segue a transcrição:
Maria
Preta 9 de outubro de 98
Excelentíssimo
Sr. Barão de Geremoabo As pressas lhe escrevo para ver se axo quem va para o
Bom Conselho, Fui ao Jose Luís logo que recebi sua carta e com elle conversei
sobre o Felis, antes disto fui ao velho Borges para ver se o Felis tirava o
gado e elle Borges nada podendo arranjar e diz o Felis que absolutamente não
tira o gado o velho pediu muito, porém, não foi atendido, depois, o Virge e
este disse-me que não se metia nisto que o Felis dissse ao Jose Deziderio
vaqueiro de São Domingos que quem botasse cachorro no gado delle que malava
tanto lhe aparecesse de chumbo, estão os vaqueiros todos temorizados dizem que
não brigão e disse-me o Varge que assim disse Raimundo é um segundo
Conselheiro. Sobre o retiro que não retirao por hora por que tem dado umas
chuvinha vamos ver em que fica para então determinár. A poucos dias lhe
escrevei sobre meo negócio e hoje nada tenho a dizer que não tenho ainda
resposta do vigario. Estou tirando a lama de S. Domingo a toda preça e orror
lugares de 9 palmos e lugares de 8. hoje fui la ver o serviço, tenho estado
muito doente de antrazes, parece-me sarna, estou em remédios. Adeus, muitas
visitas a todos. De seo amigo grato muito obrigado. Severo Correia de Souza.
Não vi o cavallo do Jose Neves, porque está em Simão Dias por esta semana o
Jose vai buscar para ver se negocio.
A
análise cuidadosa da carta nos revela que a comunidade no entorno da Maria
Preta, a fazenda de Severo, já tinha um dinamismo em fins do período
oitocentista. Já haviam intrigas entre vizinhos, questões de terras a serem
resolvidos e os laços de amizade ou inimizades das muitas pessoas citadas no
texto. É conhecido o fato de Severo ser filho de Francisco Correia de Souza,
renomado proprietário rural na vila do Bom Conselho. Francisco deixou muitos
filhos e um imenso patrimônio, conforme consta em seu inventário, confeccionado
em 1884, ano da sua morte. Ao que parece, coube a Severo, no âmbito dos
espólios do patrimônio do pai, a fazenda Maria Preta.
Outro
dado importante é o caso de Manoel Lins Barreto, morador da fazenda São
Domingos, hoje um povoado de mesmo nome pertencente ao município de Fátima.
Manoel era vaqueiro da família Dantas, o São Domingos, inclusive, era uma das
propriedades da família. Manoel Nasceu em 20 de setembro de 1800 e faleceu em
11 de fevereiro de 1884. A sua linha do tempo nos dá uma ideia do quão antiga é
aquela fazenda. Em 1857 ela está registrada em nome de João Dantas dos Reis.
Os exemplos aqui citados, nos ajudam a
compreender a dinâmica do povoamento da região de Fátima enquanto sede do
município e dos povoados vizinhos. É essa uma história que se conecta com a
maior parte dos municípios da área do estado da Bahia conhecida como Semiárido
Nordeste II, uma zona cujos núcleos de povoamento iniciais se formaram no
entorno da cultura do gado vacum, ocupação iniciada pela família Ávila e
posteriormente assumida e levada a cabo pela família Dantas.
Referências:
Arquivo Público do Estado
da Bahia – Fundação Pedro Calmon.
CARCAVALHO JÚNIOR, Álvaro pinto Dantas de. O
Barão de Jeremoabo e a política do seu tempo. A trajetória de um líder
conservador na Bahia. Salvador, Secretaria de Cultura e Turismo, 2006.
CARREGOSA, Antônio Santana. Entre Padres e
Coronéis: Como as disputas oligárquicas deram forma ao município de Paripiranga.
Aracaju, Infographics, 2019.
BORGES, Edna. Fátima, Nossa Terra, Nossa Gente.
Autor autônomo, 2009.
SAMPAIO, Consuelo N. Canudos: Cartas para o
Barão. São Paulo: Edusp, 2001.
REIS, Moisés. Fátima, traços da sua história.
Aracaju, Inforgraphics, 2022.
SOUZA, Gildo D. de. Reminiscências de Bom
Conselho. Cícero Dantas: PAGE, 2008.
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