O foco desse blog é a pesquisa da história do Sertão baiano.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

O povoamento do atual município de Fátima.

 


    

 

Moisés Reis

 

Resumo:

O presente trabalho busca discorrer sobre a dinâmica de povoamento da área fronteiriça entre a Bahia e Sergipe com informações colhidas a partir de documentação primária. Aqui buscamos demonstrar que, ao contrário do que se acreditava, a região já tinha uma ocupação significativa durante boa parte do século XIX.

 

Poucos estudos até o presente momento se debruçaram sobre a chegada dos primeiros homens brancos a acessarem a área que hoje é chamada de Semiárido Nordeste II, no Estado da Bahia. Dessa forma, as informações que o pesquisador interessado nessa temática encontra são igualmente escassas, sobretudo na literatura especializada. 

            Alguns estudos, contudo, podem servir de base em um esforço de se chegar ao entendimento nesse assunto. Um deles é, sem dúvidas, a obra Entre Padres e Coronéis: Como as disputas oligárquicas deram forma ao município de Paripiranga, do sociólogo paripiranguense Antônio Carregosa, lançado em 2019. Outro estudo nesse sentido e que propõem uma visão acerca dessa ocupação é Fátima, Traços da sua História, de Moisés Reis, lançado em 2022.

            No universo além das duas obras acima citas, temos diversas obras memorialistas, como Reminiscências do Bom Conselho, de Gildo Dantas de Souza, lançado em 2008, Fátima, Nossa Terra Nossa Gente de Edna Borges, lançado em 2009, além de obras que, por ter outros focos e recortes de pesquisas, tratam do objeto de estudo que aqui colocamos em questão, de forma indireta.

            Um ponto de convergência entre as obras acima citadas, é a ideia de que núcleos de povoamento como a atual sede do município de Paripiranga, antiga Patrocínio do Coité e do atual município de Cícero Dantas, antiga Bom Conselho e demais cidade antigas como Jeremoabo, Tucano e outras já têm registrada a presença de não indígenas desde princípios do século XIX, no caso de Jeremoabo especificamente, do século XVII.

            Essas pesquisas, contudo, deixam de abordar, ou o fazem de forma superficial, as áreas vicinais, as fazendolas e pequenos pontos de passagem da estrada real ao longo do percurso nos rincões dessa área sertaneja.

            Para ser mais específico, eu me dedicarei no presente esforço, a tratar do mesmo processo de ocupação, voltado ao município de Bom Conselho e para ser mais específico ainda, tratarei aqui, da área territorial que hoje pertence ao município de Fátima, desmembrado de Cícero Dantas pela lei estadual n.º 4413, de 01-04-1985.

            O município de Cícero Dantas, tinha, na data da sua elevação a tal posto, a configuração observada na figura 1 e foi, ao longo dos anos, sendo desmembrado em municípios menores, conforme se observa na figura 2:

 

Figura 1: Município de Cícero Dantas, Bahia, 1875.


 

 

Figura 2: Município de Cícero Dantas, desmembrado.



           

Reis (2022), ao tratar da ocupação da zona pertencente atualmente à Fátima,  afirma que tal processo deu-se, nessa zona fronteiriça entre Bahia e Sergipe, mais tardiamente, para ele, a área compreendida por toda a extensão do município, foi ocupada por fazendolas antigas como a Maria Preta e outras unidade agrícolas espalhadas por toda a atual municipalidade ao longo da segunda metade do século XIX e que a atual área da sede do município esteve desabitada até a década de 1920, conforme se vê no trecho abaixo:

O atual território da sede do município de Fátima era dividido basicamente por duas fazendas, a Fazenda Boa Vista, que seria adquirida mais tarde (anos 1920) por Ângelo, e a fazenda Maria Preta, de Propriedade do Severo Correia de Souza. (Reis, 2022. P. 51).

 

Antes de avaliarmos a afirmação, é preciso que se diga que, após o lançamento da referida obra, novos dados foram descobertos, sobretudo a partir de documentação primária, o que mudou substancialmente esse entendimento.

Em estudos recentes, novas evidencias nos mostram que a ideia de que a atual zona urbana do município de Fátima só foi ocupada de forma efetiva a partir dos anos 1920 está equivocada e algumas evidências que serão apreciadas agora, nos ajudam a sustentar essa assertiva, a primeira delas, um processo crime, resultante de um homicídio praticado em 1919 na atual rua João Lucino, nas imediações da praça primordial do mesmo município, a Praça Ângelo Lagoa.

Era uma tarde de 18 de dezembro de 1919 quando tiros são ouvidos no local que, à época, era conhecido como “Baixa do Coelho”. Estava sendo consumado naquele momento, um crime de vingança contra João Lucindo de Souza. Os agressores, pelo menos nove homens que moravam em áreas adjacentes, cumpriam uma trama iniciada meses antes que tinha como enredo um defloramento de uma sobrinha da vítima, acompanhado por uma agressão seguida de castração como vingança do defloramento. O assassinato, como dito, fechava esse ciclo macabro e dava início ao processo-crime que nos revelou preciosos dados acerca da ocupação do que hoje é a sede de Fátima.

Seguindo o progresso corriqueiro do processo, após o indiciamento dos acusados e temas preliminares, a promotoria arrola as testemunhas e seus depoimentos são a nossa principal fonte nesse momento.

Antes de ingressar nos depoimentos propriamente ditos, uma digressão é necessária a fim de registrar que, se já havia, em 1919, uma sociedade formada na área, com laços familiares e de amizade consistentes ao ponto de ser tramado tal ato vingança, significa que aquelas pessoas já habitavam aquela região e conviviam em comunidade há alguns anos. Os dados que analisaremos abaixo nos ajudam a sustentar essa hipótese.

Entre os depoimentos dados na época, está o de uma moradora vizinha ao local do crime que reporta ter socorrido a viúva de João Lucindo que viajava com ele e que, por pouco, não foi também assassinado junto com o marido. Vejamos o relato:

 

Theodora Maria das Virgens, 31 anos, nascida em 1891, casada, moradora da laje. Perguntada sobre os fatos, disse que estava em casa, quando ouviu o barulho dos tiros e uma mulher gritando por socorro (trecho ilegível) um grupo de homens armados que lhe disse: vai olhar para João Lucindo que está de pernas para cima ali na estrada morto para servir de testemunha? E chegando no lugar onde estava a vítima, encontrou a viúva, estando como morto João Lucindo. Viu uma turma de homens armados, não sabendo as armas (trecho ilegível) umas espingardas e outros – Respondeu não saber quem mandasse praticar o crime – respondeu que estima os acusados como amigos, mas que ultimamente tiveram uma rusga e ficaram inimigos, não sabendo exatamente a razão – respondeu que a vítima tinha por procedimento trabalhar muito.

 

Eis aqui um relato consistente de alguém nascido na atual zona urbana do município no final do século XIX, um documento confeccionado sub juramento e com pouca margem para falsificações.

Mas essa não é a única evidência, no mesmo processo, temos outros depoimentos que servem ao mesmo propósito. Pedro Félix de Oliveira, 30 anos na época, nascido em 1892, na Laje da Boa vista é mais um depoente do caso, nascido nos arredores da atual sede do município.

No mesmo processo, dois dos acusados eram moradores da fazenda pedrinhas, zona rural de Fátima, e são também prova da ocupação dessa área ainda no século XIX.  Os irmãos são João Porfírio dos Reis, na época com 32 anos e Joaquim Francisco dos Reis, na oportunidade com 44 anos. Ambos, filhos de Manoel Felipe dos Reis.

            No documento acima citado, os irmãos afirmam ser naturais das Pedrinhas, mas não reportam se o seu pai ali nasceu ou não. Tomando como base a idade do mais velho, Joaquim, é possível depreender que este nasceu 1878, na propriedade mantida pela família onde hoje é a comunidade das Pedrinhas.

Um outro documento de suma importância para fundamentar a tese do povoamento antigo de Fátima é um inventário confeccionado a 17 de julho de 1942. O documento arrola os bens da falecida Porfíria Maria de Jesus, esposa de Ângelo José de Souza, o fundador da cidade. Ângelo, que contava na época com 74 anos de idade, assina o inventário que traz a lista dos filhos do casal, são quinze filhos, nove dos quais, nascidos na atual praça que leva o nome do fundador, ainda no século XIX.

Talvez o exemplo mais eloquente desse povoamento é Severo Coreia de Souza, fazendeiro dono da Maria Preta, uma fazenda que criava gado e dispunha de mão de obra escrava. As terras de Severo, membro da poderosa família Correia, se localizavam onde hoje é o bairro do Pisa Macio. Existem informações consistentes sobre Severo e a Maria Preta. Talvez a coletânea de documentos primários que nos fornece mais dados é o acervo do Museu do Nordeste, em Itapicuru, Bahia.

O museu que funciona no antigo solar erguido por Cícero Dantas Martins, o Barão de Jeremoabo em 1894 guarda grande acervo de documentos antigos guardados pela família Dantas. Entre a documentação lá armazenada está o caderno de notas do Barão, onde ele fez anotações de nascimento, casamentos e falecimentos de amigos e parentes. Por intermédio dessa documentação e do livro Cartas para o Barão de Consuelo Novais, descobri que Severo Correia de Souza era tenente da guarda nacional e que se correspondia com frequência com o Barão de Jeremoabo. Em uma das cartas enviada por severo ao Barão, tratam de questões de terras e negócios, a missiva, inclusive, foi publicada no livro acima citado.

            Através dos dados colhidos do enorme acervo deixado pela Barão, descobrimos que Severo se casou no dia 30 de setembro de 1861 com Líbia, da qual o sobrenome desconhecemos. Líbia não tinha completado ainda os 12 anos quando se casou pois, sua data de nascimento é 11 de dezembro de 1849. O casal teve dois filhos, João Severo de Souza, nascido em 14 de julho de 1869 e Francisca de Souza, nascida em 21 de setembro de 1890.

            Severo, que era amigo do Barão, se correspondia com o fidalgo por carta. Uma dessas correspondências faz parte do acervo Corpus Eletrônico Documentos do Sertão, mantido pela Universidade de Feira de Santana. A carta, escrita por Severo é datada de 1898. Segue a transcrição:

 

Maria Preta 9 de outubro de 98

Excelentíssimo Sr. Barão de Geremoabo As pressas lhe escrevo para ver se axo quem va para o Bom Conselho, Fui ao Jose Luís logo que recebi sua carta e com elle conversei sobre o Felis, antes disto fui ao velho Borges para ver se o Felis tirava o gado e elle Borges nada podendo arranjar e diz o Felis que absolutamente não tira o gado o velho pediu muito, porém, não foi atendido, depois, o Virge e este disse-me que não se metia nisto que o Felis dissse ao Jose Deziderio vaqueiro de São Domingos que quem botasse cachorro no gado delle que malava tanto lhe aparecesse de chumbo, estão os vaqueiros todos temorizados dizem que não brigão e disse-me o Varge que assim disse Raimundo é um segundo Conselheiro. Sobre o retiro que não retirao por hora por que tem dado umas chuvinha vamos ver em que fica para então determinár. A poucos dias lhe escrevei sobre meo negócio e hoje nada tenho a dizer que não tenho ainda resposta do vigario. Estou tirando a lama de S. Domingo a toda preça e orror lugares de 9 palmos e lugares de 8. hoje fui la ver o serviço, tenho estado muito doente de antrazes, parece-me sarna, estou em remédios. Adeus, muitas visitas a todos. De seo amigo grato muito obrigado. Severo Correia de Souza. Não vi o cavallo do Jose Neves, porque está em Simão Dias por esta semana o Jose vai buscar para ver se negocio.

           

A análise cuidadosa da carta nos revela que a comunidade no entorno da Maria Preta, a fazenda de Severo, já tinha um dinamismo em fins do período oitocentista. Já haviam intrigas entre vizinhos, questões de terras a serem resolvidos e os laços de amizade ou inimizades das muitas pessoas citadas no texto. É conhecido o fato de Severo ser filho de Francisco Correia de Souza, renomado proprietário rural na vila do Bom Conselho. Francisco deixou muitos filhos e um imenso patrimônio, conforme consta em seu inventário, confeccionado em 1884, ano da sua morte. Ao que parece, coube a Severo, no âmbito dos espólios do patrimônio do pai, a fazenda Maria Preta.

Outro dado importante é o caso de Manoel Lins Barreto, morador da fazenda São Domingos, hoje um povoado de mesmo nome pertencente ao município de Fátima. Manoel era vaqueiro da família Dantas, o São Domingos, inclusive, era uma das propriedades da família. Manoel Nasceu em 20 de setembro de 1800 e faleceu em 11 de fevereiro de 1884. A sua linha do tempo nos dá uma ideia do quão antiga é aquela fazenda. Em 1857 ela está registrada em nome de João Dantas dos Reis.

 Os exemplos aqui citados, nos ajudam a compreender a dinâmica do povoamento da região de Fátima enquanto sede do município e dos povoados vizinhos. É essa uma história que se conecta com a maior parte dos municípios da área do estado da Bahia conhecida como Semiárido Nordeste II, uma zona cujos núcleos de povoamento iniciais se formaram no entorno da cultura do gado vacum, ocupação iniciada pela família Ávila e posteriormente assumida e levada a cabo pela família Dantas.

 

 

Referências:

Arquivo Público do Estado da Bahia – Fundação Pedro Calmon.

CARCAVALHO JÚNIOR, Álvaro pinto Dantas de. O Barão de Jeremoabo e a política do seu tempo. A trajetória de um líder conservador na Bahia. Salvador, Secretaria de Cultura e Turismo, 2006.

CARREGOSA, Antônio Santana. Entre Padres e Coronéis: Como as disputas oligárquicas deram forma ao município de Paripiranga. Aracaju, Infographics, 2019.

BORGES, Edna. Fátima, Nossa Terra, Nossa Gente. Autor autônomo, 2009.

SAMPAIO, Consuelo N. Canudos: Cartas para o Barão. São Paulo: Edusp, 2001.

REIS, Moisés. Fátima, traços da sua história. Aracaju, Inforgraphics, 2022.

SOUZA, Gildo D. de. Reminiscências de Bom Conselho. Cícero Dantas: PAGE, 2008.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário