No início do mês de maio de 1884, faleceu, em sua fazenda Olaria, nas
imediações da então Vila do Bom Conselho, o velho Francisco Correia de Souza.
Seu inventário, composto por 85 páginas manuscritas e conduzido pela viúva
Maria Arcênia de Jesus, revela a dimensão de um patrimônio considerável,
cuidadosamente avaliado e descrito pelo juiz municipal.
Entre os bens arrolados, constavam 14 cativos – homens, mulheres e duas
crianças, referidas no documento apenas como “os inocentes”. A presença de
escravizados em inventários desse período era prática comum, refletindo não
apenas a economia agrária do sertão nordestino, mas também a lógica
desumanizadora do sistema escravista brasileiro (SCHWARCZ,2019;MATTOS,2004).
Conforme amplamente registrado na literatura histórica, o valor atribuído a uma
pessoa escravizada variava de acordo com fatores como idade, força física,
estado de saúde, sexo, habilidades laborais e até mesmo o temperamento
percebido pelo comprador (FLORENTINO, 1997). Tais características podiam elevar
ou depreciar consideravelmente o preço daquele ser humano transformado em
mercadoria.
Um dos exemplos descritos no inventário é o de Maria, listada da seguinte
forma:
“Maria, crioula, solteira, com trinta e sete anos de idade, com os ingênuos
José, Manoel e Francisco, matriculada sob o número novecentos e noventa e
quatro da matrícula geral do município e sete da relação, avaliados por
trezentos e cinquenta mil réis.”
Neste caso, mãe e filhos foram avaliados conjuntamente, sugerindo que a venda
de crianças pequenas, mesmo no final do regime escravista, ocorria de forma
vinculada à figura materna, evitando (ou retardando) a separação familiar – uma
prática comum no tráfico interno de escravos (CHALHOUB, 2012).
Em contrapartida, a avaliação dos homens adultos, sobretudo aqueles
considerados mais aptos para o trabalho pesado, era feita individualmente, como
demonstra a descrição de Sérgio:
“Sérgio, cabra, vinte e oito anos de idade, solteiro, matriculado sob o número
mil e três da matrícula geral do município e dezesseis da relação. Avaliado por
seiscentos mil réis.”
Sérgio figurava entre os escravos mais valiosos do inventário, possivelmente em
razão de sua força física ou de alguma especialidade laboral. Registros
posteriores indicam que ele foi assassinado cerca de cinco anos depois, já sob
a posse de Raymundo Correia, um dos filhos do falecido Francisco.
Mas o que representavam 600 mil réis no contexto econômico da época? O próprio
inventário oferece pistas ao listar bens de diferentes categorias, permitindo
uma comparação aproximada:
- Um boi – 27 mil réis
- Uma vaca – 22 mil réis
- Uma casa na Vila do Bom Conselho – 600 mil réis
- Uma casa na fazenda – 150 mil réis
- Um cavalo russo – 200 mil réis
Com base nesses valores, é possível inferir que um escravo adulto como Sérgio
custava o equivalente a cerca de 22 vacas ou a uma casa de alvenaria no centro
da vila. Essa comparação evidencia o caráter mercantil da escravidão, na qual
uma vida humana podia ser equiparada, em termos monetários, a propriedades ou
animais de criação.
Para efeito meramente didático, se tomarmos como referência o valor médio atual
de uma vaca no sertão nordestino – estimado entre R$ 2.500 e R$ 3.000 por
animal adulto –, o preço de um escravo como Sérgio poderia equivaler, em
valores contemporâneos, a algo entre R$ 50.000 e R$ 60.000.
Esse exercício de conversão, ainda que hipotético, causa inevitável
desconforto. Afinal, trata-se de atribuir preço à vida humana, algo que nos
lembra da brutalidade do sistema escravista e de como ele naturalizou a
mercantilização de pessoas (MATTOS, 2004).
Contudo, como ressalta Chalhoub (2012), a história da escravidão não pode ser
romantizada ou suavizada: ela deve ser enfrentada com rigor documental e senso
crítico, para que possamos compreender os mecanismos sociais e econômicos que
sustentaram um dos capítulos mais sombrios da história brasileira.
REFERÊNCIAS
CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil
oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de
escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no
sudeste escravista – Brasil século XIX. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2004.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia
das Letras, 2019.
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