Nos
eventos das entregas de 1938 em Jeremoabo, Bahia, o arisco Ângelo roque reluta
em ceder aos apelos do vigário da cidade para se render. No trecho abaixo
(parte do livro O EMBAIXADOR DA PAZ) veremos como essa difícil negociação foi
conduzida pelo religioso.
Como
se sabe, Ângelo Roque e Corisco ainda relutavam em se entregar. Não há registro
de tentativa de contato do padre com Corisco, já com Ângelo roque, as
negociações parecem ter se arrastado por muito tempo e a insistência do vigário
pode ter ajudado o pernambucano Labareda a tomar a difícil decisão de se entregar.
No afã de ver Labareda se entregar, o religioso toma uma atitude ousada,
atitude essa, desconhecida até esse momento em que escrevo essas páginas, a
despeito da sua magnífica importância. Escreve o padre:
Ainda
esperavam nas caatingas e que eram os grupos de Corisco e Ângelo Roque, no dia
3 (1939) eu chamei um paroquiano de confiança e o incumbi de ir urgente em
procura de Ângelo Roque e lhe dizer que eu, em nome de Nossa Senhora, lhe
mandava dizer que aproveitasse a boa vontade do Capitão Felipe e que se
entregasse sem demora e que fosse sem medo, pois chegando na Bahia haveria quem
se interessasse por ele e que eu esperava que o próprio Sr. Arcebispo que sabia
quanto ele se tinha esforçado 1933 para reunir (como reuniu) muitos
companheiros a fim de se entregarem e como esteve com 24 e que só não se
entregaram porque houve um mal-entendido do lado das forças ou traição ou não
sei o que, que não quero ainda hoje saber, pois este Ângelo esteve desde fins
de fevereiro até princípios de agosto quieto, sem roubar nem matar e com
vontade de se entregar com os companheiros, o que não aconteceu também porque
ele só queria, de acordo com o comandante, a entrega, quando chegasse a
Lampião, como chefe geral. – Desta vez, porém, deu bom resultado o nosso apelo
e ele mandou dizer que, confiando nos homens e em mim, com o Sr. Arcebispo,
estava definitivamente resolvido a entregar-se ao capitão Felipe.
Algumas
informações importantes que nos ajudam a compreender o processo das entregas
podem ser retiradas do fragmento acima que foi transcrito na íntegra. A
primeira delas, diz respeito ao fato de o padre aparentemente conhecer a
localização de Ângelo Roque, um cangaceiro procurado e ainda em atividade. Isso
pode nos revelar uma relação mais estreita entre o religioso e o bandido.
Relação essa reforçada pela insinuação de que a ideia da entrega já havia sido
apresentada a Labareda em um outro momento pretérito, aparentemente em 1933,
como o mesmo padre havia citado anteriormente. O segundo ponto que merece a
atenção do leitor é a informação de que, nessa suposta negociação em 1933, o
comandante da polícia havia alegado que Ângelo Roque só se entregaria se
Lampião também o fizesse. Seria essa uma informação verdadeira? talvez nunca
saibamos.
Mas
o mesmo trecho manuscrito por José de Magalhães e Souza ainda nos traz algo de
muito importante. Note que, no recado enviado a Ângelo Roque, o padre afirma
que se valerá do próprio Arcebispo da Bahia para que intercedesse em seu favor
em caso de prisão na Bahia (Salvador). Como veremos adiante, a promessa do
padre não seria mentirosa pois, uma vez consumada a prisão de Labareda e seu
bando e a posterior transferência de todo o grupo de Paripiranga para Salvador,
o padre escreve ao arcebispo e cumpre a promessa de ajudar Labareda na prisão.
No dia 4
de maio, escrevi ao Arcebispo, D. Augusto Álvaro da Silva[1], lembrando-lhe a obrigação
que tínhamos de consciência de interceder pelo Ângelo Roque que, confiando nos
homens e sobretudo em mim e no Sr. Angusto, acabara de resolver entregar-se,
deixando em paz estes pobres sertanejos já cansados de sofrer. (Livro de Tombo
da Igreja de São João Batista de Jeremoabo, pág. 113)
Eis aqui o cumprimento da promessa
feita a Ângelo Roque para que se entregasse. Ao que tudo indica, o contato
feito pelo padre através de um positivo com Labareda ainda em atividade, foi
feito nas imediações de Jeremoabo ainda em 1938, a carta acima citada, é
registrada no Livro de Tombo a 4 de maio de 1940, o que indica que a missiva
havia sido enviada dias antes e fora lançada no livro para que, como veremos,
ficasse o registro para a posteridade tanto do cumprimento da promessa por
parte do vigário e da atitude de Labareda no sentido de se entregar.
É importante ressaltar que a entrega
de Ângelo Roque só ocorreria alguns dias depois da carta, em 30 de maio de
1940, o que indica que a correspondência foi enviada antes, como uma espécie de
salvo conduto para o chefe de grupo.
No dia 30, como dito, o Capitão Felipe
Castro, citado pelo padre no recado enviado a Ângelo Roque, foi ao encontro do
bando em Bebedouro e realizou a entrega com a cessão dos armamentos dos
cangaceiros. O grupo seguiu para Paripiranga de onde foi organizada a
transferência para Salvador.
A chegada do grupo de Ângelo Roque
também foi noticiada na imprensa da época revelando o quanto os grupos de
cangaceiros eram motivo de interesse dos jornais e, sobretudo, a expectativa
criada em toda a sociedade com a possibilidade de findar o cangaço no Nordeste.
[1]
Nascido no Recife a 8 de abril de 1876, estudou no seminário diocesano e foi
ordenado padre em 5 de março de 1899. Em 12 de maio de 1911 tornou-se bispo de
Floresta e tornou-se Arcebispo da Bahia em 1936, dois anos antes das entregas.
Faleceu em Salvador aos 92 anos a 14 de agosto de 1968.
Já
em Salvador, os jornais também noticiaram a chegada dos bandoleiros com frenesi.
O ESTADO DA BAHIA, fez o seguinte relato:
O
bando de Ângelo Roque já está com roupa de gente: nem o chapelão de couro, nem
as cartucheiras, nem o fuzil a tiracolo, nem o punhal à cintura. O cabelo,
porém, ainda grande, barba por fazer. (O Estado da Bahia, apud BONFIM, 2019,
p.75).
O vigário de Jeremoabo revela toda a
sua perspicácia para intermediar situações, mostrando que ele sabia exatamente
o que estava fazendo e o fazia de forma deliberada. A fim de oferecer base
argumentativa para o Arcebispo em missão de interceder por Labareda, o padre
escreve em carta:
[...] e
que por isso, ele deverá falar às autoridades para usarem com ele da possível
tolerância, sendo que, se não fosse por este meio, o sertão ainda tinha de
sofrer muito e o governo ainda gastar muito com o movimento de tropas sem nada
conseguir a não ser o aumento do sofrimento para o sertanejo e a paralização
das plantações no sertão e castigar suas pessoas, as pobres comunidades que
sustentam as capitais e que dá comida a todos. É o pobre trabalhador sertanejo.
Por ser verdade e para que o futuro conheça o merecimento de Ângelo Roque, pelo
esforço dele para servir aos companheiros em 1933, para se entregar, lanço aqui
tudo isso.
José
de Magalhães e Souza.
Infelizmente, não se tem os registros
de intercessão do arcebispo da Bahia em favor do ex-chefe de grupo. É
igualmente desconhecida qualquer declaração de Ângelo Roque afirmando ter sido
traído pelos religiosos com quem conversou durante o processo das entregas ou
qualquer afirmação de sensação de abandono como as tentativas de Dadá de conseguir
quem intercedesse por ela enquanto esteve presa.[1]
Talvez nunca tenhamos a certeza se o
arcebispo atendeu ou não aos apelos do Padre Magalhães, contudo, entendo não
ser digno de estranhamento pensar que os bons relacionamentos do ex-cangaceiro
na capital tenham tido alguma influência do religioso que, naturalmente, gozava
de enorme prestígio na sociedade da época.
Não há o registro da data da visita,
contudo, o padre Magalhães reporta em seus registros a visita que fez a Ângelo
Roque e parte do seu grupo na penitenciária em Salvador: “Fui confessar os
presos que estavam na cadeia e eram em número de 9, sendo 3 do extinto grupo de
bandidos e o cabeça, Ângelo Roque”. (livro de Tombo da Igreja de São João Batista
de Jeremoabo, p. 152).
O registro em questão nos mostra que,
mesmo após a transferência de Ângelo Roque e seu bando para Salvador, o vigário
continuou monitorando as condições em que os entregues estavam sendo mantidos e
buscando meios, como vimos, de garantir tratamento digno aos prisioneiros.
A notícia do julgamento e condenação
de Ângelo Roque a 95 anos de prisão parece ter caído como uma bomba para o
padre. Com tristeza e resignação, o religioso reporta em suas anotações o
ocorrido, ressaltando que todo o seu esforço teve como objetivo alcançar a paz:
[...]
muito tinha trabalhado para reunir os companheiros a se entregarem, eu,
cumprindo o meu dever de consciência, expus aos meus paroquianos o que pensava
e o que era digno de absolvição (Ângelo Roque). Não por ele, mas que tinha
evitado muitíssimos outros males e que, se ninguém conhecia, era preciso eu
explicasse para não ficar com minha consciência doendo como traidor ou como
ingrato e para que, no futuro, ninguém tivesse o direito de dizer que não
sabia. Afinal, entrou em júri e foi condenado a 95 anos de prisão. (Livro de
Tomo da Paróquia de São João Batista de Jeremoabo, p. 165).
Vários pontos importantes podem ser
notados no fragmento acima para o leitor mais atento. O primeiro deles é a
exaltação do papel de Ângelo Roque durante as negociações de paz, depois o
vigário segue falando sobre a sua frustração, pois, como veremos adiante, sua
expectativa era de que o antigo cangaceiro Labareda tivesse a absolvição por
parte dos jurados. Hoje sabemos que a pena inicial foi abrandada, informação
que, obviamente, não estava disponível no momento e o vigário acreditava que a
duríssima penalização de Roque seria cumprida, fato que muito o entristeceu.
No relato a seguir, escreve sobre como
se dirigiu aos paroquianos manifestando a sua desaprovação à condenação de
Ângelo Roque:
Como, em
meu modo de ver, foi uma ingratidão dos jurados, pois ele não veio ao tribunal
arrancado das brenhas pelos soldados e sim, por um convite em nome de Nossa
Senhora, a esperança dos homens, cumpriram o que lhe prometiam. Para a eterna
memória, lanço aqui a verdade em consciência. José de Magalhães e Souza. (Livro
de Tomo da Paróquia de São João Batista de Jeremoabo, p. 165).
Como
vimos, a lealdade do padre ao acordo feito com Ângelo Roque em 1938 se manteve
mesmo após o julgamento deste em 1941.
Existem
evidências consistentes de que o vigário visitou Labareda e os homens presos em
Salvador por mais de uma vez, o próprio vigário lança essa anotação em seu
livro de Tombo no princípio dos anos 1940.
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[1]
Quando esteve presa em Salvador, Dadá, ex-companheira de Corisco, escreve ao
famoso rábula Cosme de Farias e suplica pela sua intervenção. Na oportunidade,
Sérgia Ribeiro, a Dadá, encontrava-se em difícil situação na prisão. Sem uma
das pernas, amputada após o combate que vitimou Corisco e com pesadas acusações
jurídicas contra si, Dadá alega não ter mais a quem recorrer. Cosme de Farias,
conhecido como o advogado dos pobres, impetra Habeas Corpus em favor de Dadá,
em dezembro de 1941 e consegue libertá-la da prisão. O advogado prático ainda
fez mais, presenteou a ex-cangaceira com uma máquina de costura, instrumento
com o qual, Dadá se sustentou por anos, criando filhos e netos com a notória
habilidade que tinha como costureira desde os tempos do cangaço.
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