O foco desse blog é a pesquisa da história do Sertão baiano.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

NEGOCIAÇÕES COM ÂNGELO ROQUE.


 

Nos eventos das entregas de 1938 em Jeremoabo, Bahia, o arisco Ângelo roque reluta em ceder aos apelos do vigário da cidade para se render. No trecho abaixo (parte do livro O EMBAIXADOR DA PAZ) veremos como essa difícil negociação foi conduzida pelo religioso.

Como se sabe, Ângelo Roque e Corisco ainda relutavam em se entregar. Não há registro de tentativa de contato do padre com Corisco, já com Ângelo roque, as negociações parecem ter se arrastado por muito tempo e a insistência do vigário pode ter ajudado o pernambucano Labareda a tomar a difícil decisão de se entregar. No afã de ver Labareda se entregar, o religioso toma uma atitude ousada, atitude essa, desconhecida até esse momento em que escrevo essas páginas, a despeito da sua magnífica importância. Escreve o padre:

 

Ainda esperavam nas caatingas e que eram os grupos de Corisco e Ângelo Roque, no dia 3 (1939) eu chamei um paroquiano de confiança e o incumbi de ir urgente em procura de Ângelo Roque e lhe dizer que eu, em nome de Nossa Senhora, lhe mandava dizer que aproveitasse a boa vontade do Capitão Felipe e que se entregasse sem demora e que fosse sem medo, pois chegando na Bahia haveria quem se interessasse por ele e que eu esperava que o próprio Sr. Arcebispo que sabia quanto ele se tinha esforçado 1933 para reunir (como reuniu) muitos companheiros a fim de se entregarem e como esteve com 24 e que só não se entregaram porque houve um mal-entendido do lado das forças ou traição ou não sei o que, que não quero ainda hoje saber, pois este Ângelo esteve desde fins de fevereiro até princípios de agosto quieto, sem roubar nem matar e com vontade de se entregar com os companheiros, o que não aconteceu também porque ele só queria, de acordo com o comandante, a entrega, quando chegasse a Lampião, como chefe geral. – Desta vez, porém, deu bom resultado o nosso apelo e ele mandou dizer que, confiando nos homens e em mim, com o Sr. Arcebispo, estava definitivamente resolvido a entregar-se ao capitão Felipe.

 

Algumas informações importantes que nos ajudam a compreender o processo das entregas podem ser retiradas do fragmento acima que foi transcrito na íntegra. A primeira delas, diz respeito ao fato de o padre aparentemente conhecer a localização de Ângelo Roque, um cangaceiro procurado e ainda em atividade. Isso pode nos revelar uma relação mais estreita entre o religioso e o bandido. Relação essa reforçada pela insinuação de que a ideia da entrega já havia sido apresentada a Labareda em um outro momento pretérito, aparentemente em 1933, como o mesmo padre havia citado anteriormente. O segundo ponto que merece a atenção do leitor é a informação de que, nessa suposta negociação em 1933, o comandante da polícia havia alegado que Ângelo Roque só se entregaria se Lampião também o fizesse. Seria essa uma informação verdadeira? talvez nunca saibamos.

Mas o mesmo trecho manuscrito por José de Magalhães e Souza ainda nos traz algo de muito importante. Note que, no recado enviado a Ângelo Roque, o padre afirma que se valerá do próprio Arcebispo da Bahia para que intercedesse em seu favor em caso de prisão na Bahia (Salvador). Como veremos adiante, a promessa do padre não seria mentirosa pois, uma vez consumada a prisão de Labareda e seu bando e a posterior transferência de todo o grupo de Paripiranga para Salvador, o padre escreve ao arcebispo e cumpre a promessa de ajudar Labareda na prisão.

 

No dia 4 de maio, escrevi ao Arcebispo, D. Augusto Álvaro da Silva[1], lembrando-lhe a obrigação que tínhamos de consciência de interceder pelo Ângelo Roque que, confiando nos homens e sobretudo em mim e no Sr. Angusto, acabara de resolver entregar-se, deixando em paz estes pobres sertanejos já cansados de sofrer. (Livro de Tombo da Igreja de São João Batista de Jeremoabo, pág. 113)

 

          Eis aqui o cumprimento da promessa feita a Ângelo Roque para que se entregasse. Ao que tudo indica, o contato feito pelo padre através de um positivo com Labareda ainda em atividade, foi feito nas imediações de Jeremoabo ainda em 1938, a carta acima citada, é registrada no Livro de Tombo a 4 de maio de 1940, o que indica que a missiva havia sido enviada dias antes e fora lançada no livro para que, como veremos, ficasse o registro para a posteridade tanto do cumprimento da promessa por parte do vigário e da atitude de Labareda no sentido de se entregar.

          É importante ressaltar que a entrega de Ângelo Roque só ocorreria alguns dias depois da carta, em 30 de maio de 1940, o que indica que a correspondência foi enviada antes, como uma espécie de salvo conduto para o chefe de grupo.

          No dia 30, como dito, o Capitão Felipe Castro, citado pelo padre no recado enviado a Ângelo Roque, foi ao encontro do bando em Bebedouro e realizou a entrega com a cessão dos armamentos dos cangaceiros. O grupo seguiu para Paripiranga de onde foi organizada a transferência para Salvador.

          A chegada do grupo de Ângelo Roque também foi noticiada na imprensa da época revelando o quanto os grupos de cangaceiros eram motivo de interesse dos jornais e, sobretudo, a expectativa criada em toda a sociedade com a possibilidade de findar o cangaço no Nordeste.




[1] Nascido no Recife a 8 de abril de 1876, estudou no seminário diocesano e foi ordenado padre em 5 de março de 1899. Em 12 de maio de 1911 tornou-se bispo de Floresta e tornou-se Arcebispo da Bahia em 1936, dois anos antes das entregas. Faleceu em Salvador aos 92 anos a 14 de agosto de 1968.


Já em Salvador, os jornais também noticiaram a chegada dos bandoleiros com frenesi. O ESTADO DA BAHIA, fez o seguinte relato:

 

O bando de Ângelo Roque já está com roupa de gente: nem o chapelão de couro, nem as cartucheiras, nem o fuzil a tiracolo, nem o punhal à cintura. O cabelo, porém, ainda grande, barba por fazer. (O Estado da Bahia, apud BONFIM, 2019, p.75).

          O vigário de Jeremoabo revela toda a sua perspicácia para intermediar situações, mostrando que ele sabia exatamente o que estava fazendo e o fazia de forma deliberada. A fim de oferecer base argumentativa para o Arcebispo em missão de interceder por Labareda, o padre escreve em carta:

 

[...] e que por isso, ele deverá falar às autoridades para usarem com ele da possível tolerância, sendo que, se não fosse por este meio, o sertão ainda tinha de sofrer muito e o governo ainda gastar muito com o movimento de tropas sem nada conseguir a não ser o aumento do sofrimento para o sertanejo e a paralização das plantações no sertão e castigar suas pessoas, as pobres comunidades que sustentam as capitais e que dá comida a todos. É o pobre trabalhador sertanejo. Por ser verdade e para que o futuro conheça o merecimento de Ângelo Roque, pelo esforço dele para servir aos companheiros em 1933, para se entregar, lanço aqui tudo isso.

José de Magalhães e Souza.

 

          Infelizmente, não se tem os registros de intercessão do arcebispo da Bahia em favor do ex-chefe de grupo. É igualmente desconhecida qualquer declaração de Ângelo Roque afirmando ter sido traído pelos religiosos com quem conversou durante o processo das entregas ou qualquer afirmação de sensação de abandono como as tentativas de Dadá de conseguir quem intercedesse por ela enquanto esteve presa.[1]

          Talvez nunca tenhamos a certeza se o arcebispo atendeu ou não aos apelos do Padre Magalhães, contudo, entendo não ser digno de estranhamento pensar que os bons relacionamentos do ex-cangaceiro na capital tenham tido alguma influência do religioso que, naturalmente, gozava de enorme prestígio na sociedade da época.

          Não há o registro da data da visita, contudo, o padre Magalhães reporta em seus registros a visita que fez a Ângelo Roque e parte do seu grupo na penitenciária em Salvador: “Fui confessar os presos que estavam na cadeia e eram em número de 9, sendo 3 do extinto grupo de bandidos e o cabeça, Ângelo Roque”. (livro de Tombo da Igreja de São João Batista de Jeremoabo, p. 152).

          O registro em questão nos mostra que, mesmo após a transferência de Ângelo Roque e seu bando para Salvador, o vigário continuou monitorando as condições em que os entregues estavam sendo mantidos e buscando meios, como vimos, de garantir tratamento digno aos prisioneiros.

          A notícia do julgamento e condenação de Ângelo Roque a 95 anos de prisão parece ter caído como uma bomba para o padre. Com tristeza e resignação, o religioso reporta em suas anotações o ocorrido, ressaltando que todo o seu esforço teve como objetivo alcançar a paz:

 

[...] muito tinha trabalhado para reunir os companheiros a se entregarem, eu, cumprindo o meu dever de consciência, expus aos meus paroquianos o que pensava e o que era digno de absolvição (Ângelo Roque). Não por ele, mas que tinha evitado muitíssimos outros males e que, se ninguém conhecia, era preciso eu explicasse para não ficar com minha consciência doendo como traidor ou como ingrato e para que, no futuro, ninguém tivesse o direito de dizer que não sabia. Afinal, entrou em júri e foi condenado a 95 anos de prisão. (Livro de Tomo da Paróquia de São João Batista de Jeremoabo, p. 165).

 

          Vários pontos importantes podem ser notados no fragmento acima para o leitor mais atento. O primeiro deles é a exaltação do papel de Ângelo Roque durante as negociações de paz, depois o vigário segue falando sobre a sua frustração, pois, como veremos adiante, sua expectativa era de que o antigo cangaceiro Labareda tivesse a absolvição por parte dos jurados. Hoje sabemos que a pena inicial foi abrandada, informação que, obviamente, não estava disponível no momento e o vigário acreditava que a duríssima penalização de Roque seria cumprida, fato que muito o entristeceu.

          No relato a seguir, escreve sobre como se dirigiu aos paroquianos manifestando a sua desaprovação à condenação de Ângelo Roque:

 

Como, em meu modo de ver, foi uma ingratidão dos jurados, pois ele não veio ao tribunal arrancado das brenhas pelos soldados e sim, por um convite em nome de Nossa Senhora, a esperança dos homens, cumpriram o que lhe prometiam. Para a eterna memória, lanço aqui a verdade em consciência. José de Magalhães e Souza. (Livro de Tomo da Paróquia de São João Batista de Jeremoabo, p. 165).

         

Como vimos, a lealdade do padre ao acordo feito com Ângelo Roque em 1938 se manteve mesmo após o julgamento deste em 1941.

Existem evidências consistentes de que o vigário visitou Labareda e os homens presos em Salvador por mais de uma vez, o próprio vigário lança essa anotação em seu livro de Tombo no princípio dos anos 1940.

 

Moisés Santos Reis Amaral, Professor há 22 anos do Município de Fátima, Licenciado em História pela Uniages com especialização em História e Cultura Afro-brasileira pela UNIASSELVI, Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe. Autor das obras: Manual Didático do Professor de História, O Nazista, Fátima: Traços da sua Histórias, O Embaixador da Paz, Maria Preta: Escravismo no sertão baiano, e da HQ Histórias do Cangaço.

 

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[1] Quando esteve presa em Salvador, Dadá, ex-companheira de Corisco, escreve ao famoso rábula Cosme de Farias e suplica pela sua intervenção. Na oportunidade, Sérgia Ribeiro, a Dadá, encontrava-se em difícil situação na prisão. Sem uma das pernas, amputada após o combate que vitimou Corisco e com pesadas acusações jurídicas contra si, Dadá alega não ter mais a quem recorrer. Cosme de Farias, conhecido como o advogado dos pobres, impetra Habeas Corpus em favor de Dadá, em dezembro de 1941 e consegue libertá-la da prisão. O advogado prático ainda fez mais, presenteou a ex-cangaceira com uma máquina de costura, instrumento com o qual, Dadá se sustentou por anos, criando filhos e netos com a notória habilidade que tinha como costureira desde os tempos do cangaço. 

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