O foco desse blog é a pesquisa da história do Sertão baiano.

domingo, 16 de abril de 2023

As entregas sob a perspectiva de um vigário.

José de Magalhães e Souza (ao centro). Fonte: Blog Lampião aceso

 

Em novembro de 1938, Lampião e parte do seu bando já haviam sido abatidos na grota do angico, deixando um vazio de comando entre os grupos cangaceiros. Na oportunidade, os jornais do Nordeste alardeavam a notícia das entregas de grupos, alguns dos mais famosos na cidade de Jeremoabo-BA. Uma famosa foto daquele episódio foi veiculada pelo jornal Diário da Noite, na edição das 11 horas, no dia 5 de novembro de 1938.

A fotografia em questão, mostrava homens perfilados contra uma parede, alguns sentados e outros de pé. Eram religiosos, militares e cangaceiros que posavam para uma imagem que representava o fim de um dos períodos mais conturbados da história brasileira.

Entre os personagens dessa icônica foto, um deles se destaca pela satisfação exposta em seu enigmático sorriso. É o vigário de Jeremoabo, o português José de Magalhães e Souza, que, aliás, foi o idealizador da foto.

As informações que compõem os acontecimentos em Jeremoabo naquele novembro de 1938, já são fartamente conhecidas pela historiografia do cangaço. A novidade aqui constante, com efeito, reside no detalhado registro feito pelo Padre José de Magalhães no Livro de Tombo da igreja Matriz de Jeremoabo, onde eventos até agora desconhecidos pelos pesquisadores e público em geral vêm à tona após ficarem ocultos por mais de oitenta anos.

José de Magalhães, como dito, era português, chegou em Jeremoabo dez anos antes do acontecido, uma vez que sua chegada à cidade é datada de 8 de março de 1928. Teve grande empenho na missão de acabar com o banditismo na região, por diversas vezes, em seus registros, lê-se a sua vontade e empenho de “pacificar o sertão”, como ele mesmo denominava.

Não era comum o registro de atividades de bandidos nos Livros Tombo da igreja, tanto é que, ao longo das quase duzentas páginas manuscritas, apenas o relato abaixo foi feito pelo religioso. Na maioria das vezes, reportava apenas o medo e o perigo das estradas por onde trafegava montado a cavalo ou em automóveis fretados.

Com o título de “Bandidos vieram”, o padre registra para a posteridade as entregas dos bandos de Zé Sereno, Balão e Juriti, sob a ótica de um religioso que, como indicam os registros, serviu de embaixador, um intermediário entre as partes com a finalidade de findar os mortais embates entre policiais e cangaceiros.

O relato do vigário, nos mostra que Juriti e Borboleta, foram os homens que tiveram a iniciativa de procurar as autoridades para manifestar o desejo de se entregarem. Missão perigosa, enquanto outros quinze cangaceiros, como veremos, aguardavam em local seguro e desconhecido o desenrolar dos fatos.  

Assim, escreve o padre:

 

No princípio da missão, devo declarar, que vieram entregar-se dois bandidos por alcunha de Juriti e Borboleta. Os quais, deixaram os companheiros no mato e arriscaram se seria verdade não fuzilarem os que vinham chegando aqui.

 

A partir daqui o empenho do religioso e o seu protagonismo vão ficando mais evidentes e o plano da entrega vai sendo revelado:

 

Chamei Juriti ao meu gabinete, soube dos cálculos (planos) e da dúvida dos que ficaram no mato e soube mais, que eles só acreditavam em misericórdia e não serem mortos logo se vissem ir ao mato, no meio dos soldados e algum oficial, eles dois que tinham vindo como experiência.

 

Fotografia da mesma ocasião. Fonte: Acervo pessoal de Robério Santos

O trecho acima nos revela os detalhes do plano, onde Juriti e Borboleta deveriam vir à Jeremoabo e retornar sãos e salvos ao coito, acompanhados dos soldados e um oficial. Essa era, aparentemente, uma exigência dos demais cangaceiros para também se entregarem.

De acordo com o Padre, ele mesmo decidiu tomar parte das negociações e mediar todo o processo:

 

Isto sabendo, com toda a diplomacia e sem que descobrisse segredo algum nem fizesse crime ao comandante, Capitão Aníbal, pedi ao Capitão Aníbal o grande obséquio de permitir-me uma oficial, a qual lhe traria a glória de pacificar o sertão e que deixasse ir os dois bandidos ao mato para trazer os outros.

 

Foi uma atitude ousada e corajosa do vigário, visto que, deixar ir Juriti e Borboleta com a promessa de voltar com os companheiros acoitados no mato seria um risco, inclusive para a carreira do Capitão que já havia - como veremos – registrado a prisão dos dois. O diálogo que veremos a seguir, nos dá uma mostra da tensão daquelas decisões:

 

[...] ao que me respondeu: E se estes bandidos, cuja captura já comuniquei, fugirem? Como fico? E eu respondi-lhe: não receie, comandante, tenho confiança que eles não fogem, responderei por eles, vindo recrutar os outros e do contrário não sei. O capitão fez o favor de atender-me. Voltaram ao mato com os soldados e no seio da missão, à tarde, tivemos a alegria de ver chegar aqui, junto da nossa casa, no comando geral do D. H. E.  os dois que tinham voltado e trouxeram mais quinze e que eram o grupo de José Sereno, Balão, Juriti e Criança, etc.

E assim foi finalizado o perigoso processo de entregas dos cangaceiros. Zé Sereno, em entrevistas, décadas depois, relataria a tensão daquele momento na cidade de Jeremoabo.

Após os procedimentos da entrega propriamente dita, o clima de tensão arrefeceu, talvez pelo fato de os cangaceiros não terem sido encarcerados. A estada dos cangaceiros na cidade, ainda geraria situações curiosas, conforme registra o vigário:

 

A noite convidei-os para ir ao sermão da noite, ao qual eles concederam, mas contando que eu fosse com eles; no dia seguinte, foram à missa, depois pediram ao Frade para confessar-se, o que foi feito em nossa casa [...] o Frei Francisco fez uma comovente preparação para a comunhão que ele mesmo lhes deu e eu fui convidá-los para tomar café em nossa casa, onde foi servido por algumas zeladoras que se admiraram do cuidado de eles não sujarem a mesa e de se benzerem e rezarem ao fim.

 

A tensão do momento pode ser constatada quando o padre convida os cangaceiros para fazer a famosa fotografia que ilustra esse artigo. Segue o relato:

 

[...] logo em seguida convidei-os para tirar um retrato e eles logo se prontificaram, mas contanto que eu também fosse. Era horrível o receio deles, encostados na parede e eu, conhecendo que era o receio de fuzilamento, receio que eu fiz desaparecer convidando o Capitão Aníbal e subalterno oficial para nos darem o prazer de tirarem o retrato conosco, ao que eles concederam e logo pedi a eles (ex- bandidos) para que fizessem chegar aos cantos dos matos o pedido do vigário e frades que queríamos os outros que ainda faltavam. Note-se que eu lhes falei para que trouxessem do mato todos os companheiros como andavam (com cabeleira e todos os aparelhamentos que eram completamente horríveis).

 

A foto em questão foi amplamente veiculada na época. Na obra Fim do Cangaço: As Entregas, Luiz Rúben faz a descrição dos presentes:

 

Identificação dos cangaceiros, volantes e religiosos:

 

Marinheiro, Lajanjeira, desconhecido, talvez Beija Flor, Padre José de Magalhães e Souza, Novo Tempo, Ponto Fino, Quina-quina, Azulão e Balão. Sentados da esquerda para a direita, salvo melhor identificação: Zé Sereno, Juriti, Candeeiro, Frade Capuchinho, Agostinho, cujo nome completo é Agostinho de Loro Piceno, tenente Alípio Fernandes da Silva, frade capuchinho Francisco, cujo nome completo era Francisco Urbania, Cuidado e Criança.

Parte traseira da fotografia que ilustra este artigo descrevendo os retratados. Fonte: Blog Lampião aceso.

 

Conforme já descrito aqui no Blog História de Fátima, o Padre Jose de Magalhães tem estreitas relações com Fátima, pois foi sob sua orientação que, em 1935, foi construída a primeira capela que daria origem a atual igreja Matriz da cidade, foi ele também o idealizador da mudança de nome de Mocó para Montalegre.

 

Foto da mesma ocasião. Fonte: Blog Lampião aceso.

Essa publicação só foi possível graças ao envio do livro de tombo feito pelo amigo Rafael Carvalho.

Moisés Santos Reis Amaral, Professor há 21 anos do Município de Fátima, Licenciado em História pela Uniages com especialização em História e Cultura Afro-brasileira, Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe. Autor das obras: Manual Didático do Professor de História, O Nazista e da HQ Histórias do Cangaço e Fátima, traços da sua história.

 

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Um comentário:

  1. Parabéns Professor Moisés Santos!
    Publicações como esta serve para ratificar o trabalho de muitos pesquisadores, que mesmo utilizando outras fontes conseguiram transmitir essa parte da História.

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