BR-110: ASPECTOS HISTÓRICOS DO TRECHO CIPÓ/PAULO AFONSO.
A partir do século XVIII, com o início da ocupação do sertão,
estradas rudimentares foram surgindo ao passo lento do gado. Eram os “caminhos
do boi”, vias de ligação interna do sertão que, eventualmente, também
conectavam a região aos mercados consumidores de carne bovina no litoral. Como
observa Cascudo (2004, p. 215), "O gado, que foi o grande desbravador do
sertão, abriu os primeiros caminhos, as 'linhas de vida' que ligavam as
curradas ao rio São Francisco e deste ao litoral".
O rio São Francisco, que outrora fora chamado de “Rio dos
Currais”, era a principal fonte de água potável do sertão. Essas estradas,
portanto, cruzavam a zona sertaneja, criando uma teia arterial que singrava a
terra seca, ligando o grande rio ao litoral. Anderson (1979, p. 87) corrobora
essa visão ao afirmar que "O São Francisco, desde os primórdios da
colonização, foi o 'Rio dos Currais', a grande artéria de penetração e fixação
do homem no sertão".
A vila de Bom Conselho, atual Cícero Dantas (BA), era um
importante ponto de acesso a meio caminho entre os dois extremos: o litoral e o
São Francisco. Seus olhos d’água e localização privilegiada transformaram
gradativamente a vila em um ponto estratégico para feiras de gado e comércio.
Esses caminhos primordiais formariam a base do traçado das
estradas modernas. Evidência disso é que o trecho da atual BR-110 já era citado
por Euclides da Cunha na célebre obra Os Sertões como a "antiquíssima
estrada do Bom Conselho a Jeremoabo" (CUNHA, 2019, p. 112).
Foi somente no final do século XIX, no entanto, que o governo da
Bahia iniciou discussões em torno de um plano para transformar os caminhos
rústicos em estradas carroçáveis, o que representava um importante processo de
modernização dessas vias, que deveriam ligar o litoral ao sertão profundo. O
trecho que corta Cícero Dantas já aparecia como prioritário. Esse ideário de
progresso é analisado por Sevcenko (1983, p. 45), que afirma: "O ideário
do progresso no final do Império e início da República incluía a transformação
dos 'caminhos do boi' em 'estradas de rodagem', visando a integração da
província e a circulação de mercadorias".
No início do século XX, registram-se as discussões em torno do
Projeto Oficial de Estradas e Rodagem, uma iniciativa igualmente do governo
baiano para melhorar o acesso a áreas mais distantes da capital e com potencial
econômico significativo. O projeto definia esses caminhos como "estradas
de penetração". De acordo com registros da época, o primeiro traçado
oficial listado para receber melhorias foi o dos trechos Água Comprida →
Alagoinhas → Inhambupe → Itapicuru → Bom Conselho → Geremoabo (com “G”) → Paulo
Afonso → Jatobá.
A consolidação das obras nesses trechos passou por modificações
que adaptaram a estrada para a passagem de veículos leves. Foram obras ainda
tímidas, mas que fortaleceram economicamente as regiões que margeavam a via.
Nos anos 1940, o Plano Rodoviário Nacional chegou com fortes
impactos para a região. Com a entrada em cena do Governo Federal, muitos
caminhos estaduais foram absorvidos pelo sistema federal. Mendonça (1998, p.
134) contextualiza esse processo: "O Plano Nacional de Viação, concebido
no Estado Novo e reestruturado pelo regime militar a partir de 1964, tinha como
meta a integração nacional e o controle do território através de uma malha rodoviária
unificada e numerada".
Na década de 1950, com a construção da CHESF, Paulo Afonso foi
subitamente alçado ao status de polo regional. A necessidade de acesso
rodoviário intensificou-se na medida em que o plano para uma ferrovia até Paulo
Afonso foi abandonado. As estradas passaram a ser vistas como via essencial
para o abastecimento de material de construção e para o transporte de
passageiros. Villas-Bôas (2007, p. 92) analisa esse momento: "A
inauguração da usina de Paulo Afonso pela CHESF em 1955 não apenas iluminou
cidades, mas redefiniu a lógica de integração regional, substituindo projetos
ferroviários por investimentos massivos em infraestrutura rodoviária para
escoamento de materiais e pessoal".
Nos anos 1970, ocorreu a formalização do processo de
federalização dessa rodovia. Seu traçado antigo foi finalmente batizado como
BR-110, dentro da padronização e numeração das rodovias federais, uma ação
característica do governo militar.
A primeira pavimentação asfáltica data dessa época. As obras
proporcionaram um aumento significativo no tráfego de veículos e a consolidação
de linhas de transporte por empresas do ramo. A cidade de Cícero Dantas foi
fortemente impactada por essa mudança: estabelecimentos comerciais foram
fundados, postos de combustíveis, hotéis, pousadas, restaurantes e outros
comércios deram um novo tom à antiga cidade, que se consolidou como um ponto
nodal. O impacto foi percebido não só no comércio, mas no crescimento urbano.
A BR-110 passou por diversos períodos da história brasileira,
com inúmeras obras de melhorias registradas, assim como críticas ao seu estado
de conservação e demandas por obras que visem à segurança dos usuários.
Assim, a BR-110, que hoje corta o sertão asfaltada e
movimentada, carrega em seu traçado a memória secular dos antigos 'caminhos do
boi', testemunhando a transformação e a resistência da região ao longo dos
séculos.
REFERÊNCIAS
ANDERSON,
Robert K. O Velho Chico: Uma História do Rio São Francisco. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1979.
CASCUDO,
Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. 3. ed. São Paulo: Global
Editora, 2004.
CUNHA,
Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos. 25. ed. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2019.
MENDONÇA,
Sônia Regina de. Estado e Economia no Brasil: Opções de Desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 1998.
SEVCENKO,
Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1983.
VILLAS-BÔAS, André. A Física do Poder: Energia e Desenvolvimento
no Nordeste. Recife: Fundaj, 2007.
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