Ângelo Roque em Salvador: imprensa, cangaço e estereótipos do sertão

 

Imagem de A Tarde, descoberta por Antônio Carregosa.

Após a morte de Lampião em 1938, o cangaço tornou-se inviável. As autoridades buscavam a finalização do movimento, e a rede de coiteiros que sempre o sustentou se desfazia rapidamente. Nesse contexto, muitos cangaceiros se renderam ainda naquele ano, restando poucos bandoleiros nas caatingas do Nordeste.

O grupo de Ângelo Roque, assim como o de Corisco, ainda levaria cerca de dois anos para encerrar as atividades. Corisco morreria pela ação da volante de Zé Rufino em 25 de maio de 1940, já fora de combate e sem a famosa indumentária de cangaceiro. Antes disso, em abril de 1940, o bando de Ângelo Roque se renderia no sertão e seria conduzido à capital.

Na edição de 2 de abril de 1940, o jornal A Tarde noticiava com entusiasmo a apresentação do que seria o último bando de cangaceiros ativo a se render: o grupo do pernambucano Ângelo Roque da Costa, o Labareda. Já no início da matéria, o repórter direciona o olhar do leitor para aspectos físicos do grupo recém-chegado do sertão:

 

“Ontem, às 18 horas, chegaram de automóvel, sob escolta, Ângelo Roque, o chefe do grupo, e os cangaceiros Jandaia, Saracura, Patativa e Deus-te-Guie — este último o primeiro a se entregar e o único de tez clara; os demais eram caboclos. O grupo chegou acompanhado por quatro mulheres jovens e morenas.”

 

O modo como o jornal apresenta esses indivíduos revela mais do que mera descrição: evidencia como o olhar urbano classificava o sertanejo segundo categorias raciais e corporais simplificadas. Termos como “tez clara”, “caboclos” e “morenas” funcionam como marcadores hierárquicos, reforçando estereótipos que despersonalizam e uniformizam o homem e a mulher do sertão. As mulheres, inclusive, surgem sem nome, identificadas apenas por cor e juventude — um claro apagamento típico do preconceito da imprensa da época, que via no sertanejo um tipo genérico, não um sujeito histórico.

O destaque da reportagem recai sobre o líder do bando, cuja postura surpreendeu o repórter por destoar do estereótipo violento atribuído ao sertanejo:

 

“Ângelo Roque mostrou-se sereno: um homem de aspecto simples, sem a aparência típica de quem vive em luta constante. Tinha olhar firme, postura discreta e não demonstrava insegurança. Ele tem 36 anos. Entre os demais, o mais jovem é Patativa, com 19 anos; depois vêm Janduia e Deus-te-Guie, ambos com 21; e Saracura, com 26 anos.”

 

Aqui, o preconceito aparece de forma sutil, no que o jornal considera “surpreendente”: a serenidade e a “simplicidade” de Roque são apresentadas como exceção a uma suposta norma do sertanejo — alguém “de luta constante”, bruto, marcado pela violência. O fato de o texto demonstrar espanto diante de uma postura calma revela que o repórter partia de uma imagem preconcebida, construída a partir do imaginário urbano sobre o cangaceiro e, por extensão, sobre o homem do sertão.

 

Em seguida, a matéria descreve minuciosamente o vestuário do grupo:

 

“Chamou atenção o vestuário do grupo: roupas vermelhas, camisas vistosas, faixas de pano nas pernas e chapéus de abas largas, de couro ou de feltro — inclusive as mulheres. Usavam talabartes de tecido ornamentado, largos e com arabescos, além de cartucheiras feitas no mesmo estilo. Portavam bornás e cantis, sendo o de Ângelo Roque idêntico ao modelo utilizado pelo Exército.”

 

A maneira como o jornal registra a indumentária reforça uma leitura exotizante do sertanejo. As cores, adornos e acessórios são tratados quase como curiosidades folclóricas, não como elementos culturais com lógica própria. O sertão aparece aqui como um espetáculo visual para o leitor urbano, reforçando a distância simbólica entre o litoral “civilizado” e o interior “pitoresco” — um dos pilares do preconceito regional.

 

Após a rendição, ocorrida em Paripiranga, os cangaceiros seguiram para a capital em caminhão. O jornal registra a movimentação das autoridades nesses termos:

 

“No dia 27, a comissão seguiu para Geremoabo e, de lá, para Lobódromo, com o objetivo de receber a rendição dos cangaceiros. Participaram da diligência o capitão Felipe, o capitão Salomão Rehem (delegado especial) e a escolta policial. A viagem foi difícil: terreno alagadiço, noite escura, avarias no caminhão e estrada inadequada.”

 

Aqui o preconceito aparece de forma indireta, através da descrição do território. A paisagem sertaneja é caracterizada como ambiente hostil, atrasado e resistente à ação estatal. O sertão, como o sertanejo, surge como aquilo que atrapalha o avanço da ordem. Essa narrativa reforça a dualidade histórica “capital civilizada” versus “interior bruto”, muito presente na imprensa baiana do período.

 

Como se vê, a chegada de Ângelo Roque a Salvador não representou apenas o desfecho de um ciclo do cangaço, mas também a revelação do modo como a imprensa urbana construía — e reforçava — imagens estigmatizadas do sertão e de seus habitantes. As descrições do jornal A Tarde, sustentadas por categorias raciais, exotização da indumentária e uma oposição constante entre “civilização” e “atraso”, evidenciam o olhar hierarquizado da capital sobre o interior. Ao transformar os cangaceiros em tipos físicos e o sertão em cenário hostil, o discurso jornalístico reafirma preconceitos históricos que ajudaram a moldar a percepção pública da região. A rendição de Labareda, portanto, ultrapassa o fato policial: ela expõe as tensões simbólicas entre cidade e sertão e revela como o imaginário urbano atuou na construção de narrativas que ainda hoje influenciam a compreensão da identidade sertaneja.

 

A TARDE. Grupo de Ângelo Roque chega à capital baiana. Salvador, 2 abr. 1940, p. X. (A página pode ser adicionada quando confirmada no documento.)

A reportagem em questão foi encontrada pelo pesquisador paripiranguense Antônio Carregosa.

 


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