A
tradição oral é mesmo uma das maiores riquezas de um povo. É através daquilo o
que é contado de geração em geração que a identidade de um determinado grupo de
pessoas é paulatinamente construída.
Quando eu era criança, e, de certa
forma, mesmo na fase adulta, me intrigava quando, em uma roda de conversa, alguém
– geralmente alguém mais velho, avô ou avó – após contar uma boa história,
afirmava que aquilo o que acabara de contar era História de Trancoso ou
Troncoso mesmo.
Como tudo o que é rotineiro, essa expressão,
para mim, sempre foi relegada ao campo da desimportância ou para a esfera das
inúmeras expressões utilizadas costumeiramente pelo nosso povo das quais não
sabemos quase nada, qual a sua origem e o que significava originalmente. Um exemplo
eloquente dessas expressões é “escarquiou”, palavra utilizada regionalmente para
dizer que alguém se deu mal, se frustrou e passou vergonha.
É claro que “escarquiou” pode muito
bem ser a variação de uma palavra que foi sendo pronunciada de forma equivocada
ao longo de muitos anos e que, com o passar do tempo, passou a ter uma
pronúncia totalmente diferente da palavra original, da qual não se tem notícia.
Poderia ser um termo oriundo de outro idioma e por aí vai.
As gerações mais novas,
provavelmente nunca ouviram falar de História de Trancoso. Quando eu era
criança, me acostumei a ouvir idosos contando suas histórias fantasiosas para
as crianças sentadas nas calçadas. Uma ótima oportunidade para essas ocasiões
eram as constantes faltas de energia que aconteciam em Fátima durante os anos
1990, antes da modernização do sistema elétrico da cidade feito já nos anos
2000.
Com certa frequência, as luzes da
cidade se apagavam por completo e o breu predominava em todas as ruas, o
sistema era antigo, com poucos transformadores, provavelmente foi sendo
sobrecarregado com o crescimento da cidade, o que causava os apagões.
Era nesse momento que esquecíamos da
televisão – ainda não haviam celulares - e das brincadeiras nas ruas para
sentarmos nas calçadas e simplesmente conversar sob a penumbra de um candeeiro
ou uma vela. Ali, em meio as conversas e ao gostoso contato com amigos e
familiares, os mais velhos dominavam a atenção das crianças com suas histórias
de homens com poderes fantásticos e castigos para aqueles que fugiam da conduta.
Algumas daquelas
histórias provocavam medo nos meninos e meninas, o que, posteriormente,
descobri não ser por acaso. As histórias de Trancoso foram inspiradas no
religioso português Gonçalo Fernandes Trancoso, que viveu nos 1500 anos naquele
país. Trancoso era um cronista perspicaz e conhecido por ser demasiadamente
moralista. Buscava passar às pessoas ensinamentos daquilo o que considerava ser
a conduta ideal, os valores e modos de pessoas decentes.
Ao que parece, ele desenvolveu um “método
de ensino” que, de tão eficaz, frutifica comentários até os dias de hoje tanto
em Portugal como no Brasil. Para melhor passar seus ensinamentos, Gonçalo
Fernandes Trancoso passou a criar crônicas, nas quais inseria um enredo com
histórias de vida onde, frequentemente, aqueles que agiam errado se davam muito
mal e o resultado final era sempre um ensinamento para os ouvintes. Tudo isso,
belamente incrementado com poderes sobrenaturais e fantasias diversas.
As suas crônicas ou Histórias de Trancoso
se popularizaram por Portugal e foram transportadas para o Brasil através dos
navios mercantes que aqui chegavam todos os dias. Entre a nossa gente, ganharam
novas e inúmeras versões e eram contadas de geração em geração ainda como forma
de ensinar modos a crianças e adultos.
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