O foco desse blog é a pesquisa da história do Sertão baiano.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

O preço da vida: Uma análise do inventário de Francisco Correia de Souza (1884)





No início do mês de maio de 1884, faleceu, em sua fazenda Olaria, nas imediações da então Vila do Bom Conselho, o velho Francisco Correia de Souza. Seu inventário, composto por 85 páginas manuscritas e conduzido pela viúva Maria Arcênia de Jesus, revela a dimensão de um patrimônio considerável, cuidadosamente avaliado e descrito pelo juiz municipal.

Entre os bens arrolados, constavam 14 cativos – homens, mulheres e duas crianças, referidas no documento apenas como “os inocentes”. A presença de escravizados em inventários desse período era prática comum, refletindo não apenas a economia agrária do sertão nordestino, mas também a lógica desumanizadora do sistema escravista brasileiro (SCHWARCZ,2019;MATTOS,2004).

Conforme amplamente registrado na literatura histórica, o valor atribuído a uma pessoa escravizada variava de acordo com fatores como idade, força física, estado de saúde, sexo, habilidades laborais e até mesmo o temperamento percebido pelo comprador (FLORENTINO, 1997). Tais características podiam elevar ou depreciar consideravelmente o preço daquele ser humano transformado em mercadoria.

Um dos exemplos descritos no inventário é o de Maria, listada da seguinte forma:

“Maria, crioula, solteira, com trinta e sete anos de idade, com os ingênuos José, Manoel e Francisco, matriculada sob o número novecentos e noventa e quatro da matrícula geral do município e sete da relação, avaliados por trezentos e cinquenta mil réis.”

Neste caso, mãe e filhos foram avaliados conjuntamente, sugerindo que a venda de crianças pequenas, mesmo no final do regime escravista, ocorria de forma vinculada à figura materna, evitando (ou retardando) a separação familiar – uma prática comum no tráfico interno de escravos (CHALHOUB, 2012).

Em contrapartida, a avaliação dos homens adultos, sobretudo aqueles considerados mais aptos para o trabalho pesado, era feita individualmente, como demonstra a descrição de Sérgio:

“Sérgio, cabra, vinte e oito anos de idade, solteiro, matriculado sob o número mil e três da matrícula geral do município e dezesseis da relação. Avaliado por seiscentos mil réis.”

Sérgio figurava entre os escravos mais valiosos do inventário, possivelmente em razão de sua força física ou de alguma especialidade laboral. Registros posteriores indicam que ele foi assassinado cerca de cinco anos depois, já sob a posse de Raymundo Correia, um dos filhos do falecido Francisco.

Mas o que representavam 600 mil réis no contexto econômico da época? O próprio inventário oferece pistas ao listar bens de diferentes categorias, permitindo uma comparação aproximada:

- Um boi – 27 mil réis
- Uma vaca – 22 mil réis
- Uma casa na Vila do Bom Conselho – 600 mil réis
- Uma casa na fazenda – 150 mil réis
- Um cavalo russo – 200 mil réis

Com base nesses valores, é possível inferir que um escravo adulto como Sérgio custava o equivalente a cerca de 22 vacas ou a uma casa de alvenaria no centro da vila. Essa comparação evidencia o caráter mercantil da escravidão, na qual uma vida humana podia ser equiparada, em termos monetários, a propriedades ou animais de criação.

Para efeito meramente didático, se tomarmos como referência o valor médio atual de uma vaca no sertão nordestino – estimado entre R$ 2.500 e R$ 3.000 por animal adulto –, o preço de um escravo como Sérgio poderia equivaler, em valores contemporâneos, a algo entre R$ 50.000 e R$ 60.000.

Esse exercício de conversão, ainda que hipotético, causa inevitável desconforto. Afinal, trata-se de atribuir preço à vida humana, algo que nos lembra da brutalidade do sistema escravista e de como ele naturalizou a mercantilização de pessoas (MATTOS, 2004).

Contudo, como ressalta Chalhoub (2012), a história da escravidão não pode ser romantizada ou suavizada: ela deve ser enfrentada com rigor documental e senso crítico, para que possamos compreender os mecanismos sociais e econômicos que sustentaram um dos capítulos mais sombrios da história brasileira.

REFERÊNCIAS

CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil século XIX. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


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 Moisés Santos Reis Amaral, Professor há 22 anos do Município de Fátima, Licenciado em História pela Uniages com especialização em História e Cultura Afro-brasileira pela UNIASSELVI, Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe. Autor das obras: Manual Didático do Professor de HistóriaO NazistaFátima: Traços da sua Histórias, O Embaixador da PazMaria Preta: Escravismo no sertão baiano, Últimos Cangaceiros: Justiça, prisão e liberdade, do documentário Identidade Fatimense e da HQ Histórias do Cangaço.

 

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